segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Crônica: Fila de Correio

.....Eu sempre amei cartas, carteiros e correios. Apesar de ter adotado a internet, para a surpresa de muitos, ainda vou regularmente ao correio. Envio cartas para amigos e parentes, em geral com fotos ou livros, para pessoas mais velhas ou que vivem no interior do Brasil. A cada quinze dias eu junto a pilha de cartas que acumulo numa cesta e vou a pé até o correio. Ir a pé faz parte do que tornou-se um ritual de retomada de um tempo mais lento de vida.
.....Quando chego lá, ao deparar-me com a longa fila do correio, eu sempre questiono se este meu ritual é mesmo uma dádiva reflexiva ou só uma ponta de masoquismo. Pego uma senha regular (não sou gestante e nem idosa) e junto me aos mortais. Em geral, eles já estão ali faz algum tempo e seus semblantes fazem lembrar a cena do filme Beetlejuice, quando o personagem chega ao inferno e encontra a sala de espera repleta de personagens-zumbis cobertos de teias de aranha. Acho aquilo engraçado.
.....A cadeira é horrível. Cheia de boas intenções, daqueles modelos acolchoados do tipo escritório, mas tantas pessoas já sentaram ali que estão todas afundadas e com o azul manchado. Eu não me importo. Sento-me e começo a observar os meus vizinhos. Logo identifico os divertidos novatos, com carta em punho e o dinheiro já separado em prol do bom andamento da fila. As boas intenções e sua inexorável naivete... porque é que a sapiência vem sempre acompanhada da complacência – eu já fui assim, amigo!
.....Logo chega o primeiro de muitos idosos que passarão a minha vez na fila. Eu sei que um dia, se Deus quiser, eu vou ficar idosa e agradecer a existência da lei das filas preferenciais, mas até lá, apesar de agudos esforços de racionalização, eu não consigo deixar de ressenti-los - há MUITOS idosos no correio. Velhinhos e nem tão velinhos, pois hoje em dia o pessoal é todo bem conservado e não tem como a gente contestar seu status sem passar por um jovem mesquinho. Eu sei que é a maior concentração de idosos por metro quadrado do mundo, talvez seja uma espécie de ponto de encontro. Tenho a certeza de que todos os jovens do mundo mandam seus avós postarem suas cartas e só eu é que não tenho mais avós. Teorias conspiratórias à parte, eu sei ao certo que um empresário malandro abriu uma empresa de Office-boys da terceira idade por causa deste benefício. Deve estar milionário.
.....Falando em Office-boys, sempre do sexo masculino e jovens, portanto sem lugar preferencial na fila como eu, eles são grandes companheirões. Habituados a enfrentar fila e estando em horário de trabalho, sentam-se resignados nas cadeiras manchadas, sempre carregados de pilhas de cartas comerciais. Penso que eles não se importam, pois é momento light do dia deles - melhor do que estar zanzando pelo trânsito louco da cidade de moto. Mesmo assim, e sei disso porque eu mesmo nunca vou ao correio com pressa, é impossível não incomodar-se com a lentidão no atendimento. Conversamos sobre isso e olha que o papo é de alto nível. Em geral discutimos teoria de administração pública, reconhecendo que o serviço público não tem como ser eficiente apesar de a idéia ser boa, pois o salário garantido fulmina qualquer incentivo para isso.
.....A calma dos atendentes do correio de fato é algo mistificante. São todos absolutamente impassíveis. Deve ser algo do treinamento deles, pois mesmo quando vario de correio reconheço seus semblantes padronizados. São calmos e gostam do que fazem. ADORAM colar os selos nas cartas, um a um, com o maior cuidado do mundo. Outro dia havia um rapaz o fazia como se fossem diamantes num colar de platina. Ele testou o meu limite a tal ponto que eu quase gritei do fim da fila, “Cola essa p**a logo, seu m****!” Na última greve dos correios, surpreendi-me ao vê-los lá como de hábito, sem nenhum ímpeto combativo, e o atendente me explicou, “Greve é coisa do sindicato dos carteiros, nós os atendentes de loja temos outro sindicato e nunca entramos em greve.”
.....Eu tento sempre manter meu olhar filosófico sobre a vida na fila, como se fosse uma prática meditativa. Só após uns vinte idosos, três gestantes e outras duas lactantes (agora tem isso também!) já passaram a minha frente é que eu me descontrolo. Em geral eu já estou na boca da fila e surte aquele efeito visceral de quando a fome depara-se com o cheiro do feijão. Elejo um dos novatos e começo a reclamar em voz alta, “É um absurdo esta fila.” “Um absurdo!!!” eles ecoam aliviados. Trocamos impressões, “Você viu aquela ali do ponto de atendimento número 5? Enquanto os outros atendem dez pessoas ela atende uma.” “Deve ser a estagiária” eu postulo. “E aquele cara que chegou com umas duzentas cartas e monopolizou o número 2 por quase meia hora. Isso devia ser proibido!” Eu escuto, concordo sempre, recordo outro incidente - é um ato de solidariedade, cidadãos se acolhendo em meio ao infortúnio.
.....Finalmente chega a minha vez. Às vezes eu dou uma reclamada básica sobre a demora da fila, “Eu fiquei na fila durante quase cinqüenta minutos, sabia?” As atendentes sorriem e dizem, “Terça feira é complicado mesmo.” Minhas cartas são poucas, portanto a minha transação é rápida. Rápida demais! Por um lado, sei que isso ajuda os que ainda padecem na fila, mas o lado meu mais sádico se manifesta impulsionando-me a ocupar bem ocupado a minha vez no atendimento. Me dá vontade de bater o meu papo com a atendente, perguntar quanto custa o CD do Chitãozinho e Chororó da promoção, conferir se eu posso mesmo pagar minhas contas de luz no banco postal (repararam como os correios hoje prestam dezenas de serviços, mas mantém a mesma estrutura), “Que legal, eu não sabia, blá blá blá.” Quando termino, dou um adeus bem carinhoso para os que estão na fila, “Força irmãos! A nossa vez chega! Acreditem!” Eles riem e retribuem os votos!
.....No caminho de volta, reflito sobre a perda de tempo e o atraso tecnológico do meu ritual. Cogito a internetização definitiva. Depois, penso na minha tia de 80 anos que deixaria de receber minhas cartas e na família do interior do Cariri que não receberia as fotos que tirei deles na última viagem. Com quem conversariam os Office-boys? Penso até que os idosos da fila não teriam a vez de quem pular e isso lhes tiraria toda a graça de ter o benefício.
.....Conclui que minhas idas ao correio constituem uma simbiose social sado-masoquista que merece ser mantida, por seus prazeres e desprazeres, mas principalmente por ter tornado-se um dos poucos refúgios de contato humano na cidade digital. E claro, confesso, não vou desistir antes de chegar a minha vez de ter direito preferencial na fila. Uma dia desses eu engravido ou envelheço e não posso perder essa chance!

Um comentário:

Anônimo disse...

olá tudo bem?
gostei muito da sua crônica,eu trabalho nos correios como atendente e você colocou a fila de uma maneira até bem humorada.. muitas vezes essa estória acontece lá.. mas noutras é diferente...
- Quando você diz sobre mais serviços e sem estrutura... o que você poderia citar como uma estrutura para o atual modelo de agência de correios....???
Será que um dia isso acaba???
Abraço e desde já sou seu fã...

Felipe Mattar