segunda-feira, 30 de junho de 2008

Tarde no Tanque

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Crônica Selecionada - Concurso Literário Professor Horácio Pacheco,
Academia Niteroiense de Letras, 2008.
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Eu odeio este lugar. Porque me internaram aqui? Logo eu, que sempre fui tudo o que se espera de uma mulher do meu tempo – inteligente, independente, engenheira, carreira de sucesso, sempre paguei minhas contas, nunca precisei de homem nenhum para viver, aliás eles é que precisaram de mim. Agora, olhem para mim - posta frente a um tanque de porcelana branco, com uma pilha de roupas sujas para lavar. Com as minhas próprias mãos! Insulto! E pensar nas máquinas que eu mesma já desenhei para acabar com tudo isso.
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Sei que não tenho escolha. Se não cumprir esta tarefa, demora ainda mais para eu sair daqui. E eu preciso sair daqui! Já vi muitas pessoas fazendo isso antes: minha mãe, claro; as mulheres do interior na beira do rio, quando íamos para o sítio em Minas. Quantos milênios atrás foi isso! Mas bem, se elas o faziam, não há de ser muito difícil.
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Por onde começar? Abrir a torneira. Ok. Jorra um fluxo de água cristalina. Mergulho as mãos em baixo dela e sinto seu frescor neste dia ensolarado. Agradável. Sorteio de dentro do cesto uma peça para começar. É uma camiseta destas que uso para ficar em casa. Não esta visivelmente suja. Porque eu havia posto-a na cesta? Cheiro-a. Está com cheiro de usada, é isso. Mergulho-a no fluxo de água que jorra da torneira. Será que é suficiente mergulhar a camiseta suada em água para limpá-la? Como será que a água faz para retirar o suor do tecido? Lembro-me do sabão. Sabão é necessário. Volto-me para o armário, deve haver algo ali. Encontro um sabão glicerinado de cor amarela. Ótimo. Fecho a torneira para não desperdiçar água e deslizo o sabão na camiseta esparramada na parte ondulada do tanque. Instintivamente, esfrego o tecido para cima e para baixo, mas não sei se estou fazendo certo. Quantas vezes é preciso fazer isso? Quando sei que já está bom? Sinto a fricção na pele delicada das minhas mãos e paro. Deve estar bom. Coloco o tecido ensaboado debaixo da torneira e, para meu deleite, a água sai escura. Que surpresa! Sinto o sabor de uma pequena vitória. O que será que estava na camiseta para a água sair tão escura após eu esfregá-la? Só suor? Penso no que é suor. De algum lugar do meu cérebro resgato a informação de que suor é um tipo de umidade que vem à superfície do nosso corpo e se condensa em gotinhas sobre a pele. Não é isso? Contém sal e outros minerais que nosso corpo produz. Então, o que deve acontecer é que a gotinha de suor sai de mim e é absorvida pela camiseta, fazendo-a adquirir um cheiro distinto de seu cheiro original. Cheiro original. O que seria isso? Cheiro de algodão? Algodão, colhido por trabalhadores rurais em alguma parte do Brasil, ou fora do Brasil, cujas fibras são processadas em máquinas, uma multitude delas agregadas para vir a constituir o tecido. Isso tudo provavelmente acontece na Índia. Lá também o tecido deve ser tingido e assim adquire o seu cheiro original, composto de algodão e tinta, que depois é alterado pelo meu suor. A lavagem da camiseta, com água e o sabão glicerinado, este meu ato, reabilita a camiseta à sua originalidade. Interessante, muito interessante.
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Puxo um par de meias da cesta, essas sim estão visivelmente sujas de barro. A lama está seca agora. Torneira nelas! A água é bem mais eficiente neste caso. Só em fazê-la jorrar por dentro da boca da meia, já a faz sair marrom do outro lado. A meia clareia a olhos nus! Depois de um tempo a água volta a sair límpida. Lama, que é terra molhada, que depois de seca e volta a ser terra, ou pó de terra, que fica assentada na superfície da meia, sai fácil da roupa. Em contato com um fluxo de água contínuo, as partículas se desprendem naturalmente da fibra do tecido da meia, se integram à água e vão embora. Estariam já limpas as meias? Com o suor da camiseta foi diferente, precisei ensaboar para a sujeira se soltar. O sabão deve ter algum tipo de propriedade que desintegra formações moleculares mais estáveis. Alguma coisa na forma como a qual o suor se apega ao tecido é mais estável do que a forma como a poeira se apega. Me vem um conceito antigo - tensão superficial. Acho que é isso o que explica o grude da sujeira na roupa. A mesma coisa que dá às gotinhas de chuva aquele formato arredondado. É o que dá à sujeira, de vários tipos, densidade para se agarrarem nas fibras dos tecidos. E o sabão tem uma substância que afeta essa tensão superficial, que a dissipa. Sabão torna tudo escorregadio. As moléculas da sujeira devem sofrer esse efeito escorregadio e não conseguir mais se agarrar umas às outras. Sendo assim, elas ficam desunidas e o fluxo d’água as carrega. Seu paralelo na vida humana seria os fura-greves, desunindo a massa e deixando-a a mercê de fatores externos. Ensabôo as meias uma última vez. Dependuro-as no varal.
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Sigo lavando peça após peça, seguindo a lógica que desenvolvi. Pijama, lençol, roupas de baixo, toalhas etc. O volume de roupas é grande, mas cada peça é um novo desafio seguido de uma nova pequena vitória, o que torna a atividade estimulante. A tarde torna-se uma espécie de cruzada em pról de um novo mundo. Sinto-me imbuída da missão de reabilitar cada tecido à sua condição mais imaculada, removendo deles as impurezas que os tomaram de assalto. E não resisto admitir que, nesse universo junto ao tanque, a vida é tão mais simples do que o habitual e há algo de terapêutico nisso. Há um bem e um mau claramente definidos: o bem é representado por mim, meus sabões e a torneira; o mal representado é representado por esse monte de substâncias oportunistas que se entranharam nas minhas roupas. Sinto-me bem disposta. Um cheiro de limpeza paira no ar e o varal repleto de roupas limpinhas é o meu troféu.
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A enfermeira vem me chamar para o lanche da tarde e pergunta se eu me sinto melhor. Eu digo que sim, que afinal gostei da atividade. Ela sorri com sinceridade, pois está é a sua pequena vitória. Neste centro para dependentes químicos, seu objetivo é trabalhar pela minha reabilitação. Para que eu, mulher moderna, seja também reabilitada ao meu eu original. Irônico que este caminho comece justo pelo tanque.

terça-feira, 24 de junho de 2008

quinta-feira, 19 de junho de 2008

O Coração vs O Literário

Eu sei que essa foto não é nada literária, mas o coração não aguentou! Olha que coisa mais linda e solidária a atitude dos meninos!!!

domingo, 15 de junho de 2008

Reciprocidade

Após a Reunião de Antropologia, ocorrida em Porto Seguro, neste início de Junho, juntou-se um grupo de antropólogos para visitar a Reserva da Jaqueira, que é um belíssimo projeto de eco-etno-turismo índigena, menina dos olhos dos jovens líderes Pataxó da aldeia de Coroa Vermelha. Relato que este é o melhor projeto deste tipo que já visitei no mundo, portanto recomendo a todos uma visita quando por lá passarem (e que seja em breve, pois quem não passou por aquela região do Brasil, realmente está perdendo!).
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Dentre os antropólogos do grupo visitante, havia um índio-antropólogo, chamado Florêncio, que hoje estuda na UNB e sua aldeia fica nas margens do Rio Tapajós, no Pará. Pois bem, durante o passeio, foi interessante vê-lo ali na sua outra condição dupla, além de índio-antropólogo ele era também um índio-eco-etno-turista. Um observador desinformado de sua origem, não notaria diferença alguma entre ele o o resto do grupo. No entanto, havia sim uma grande diferença, e é dela que venho lhes falar:
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Durante o passseio, nós do grupo tiramos muitas fotos com os índios, que trabalhavam vestidos de forma tradicional, belíssima, pintados, de cocares, etc. Já que estávamos dentro do "passeio turístico", pareceu natural tirar tantas fotos. Chegando ao final então! Todos se entusiasmaram a tirar fotos em frente à entrada da Reserva, com dois índios que faziam a recepção do passeio. Foi quando ofereci à Florêncio tirar uma foto dele com um dos índios. Um pouco reticente, ele terminou revelando que gostaria sim de tirar a foto. Durante a aproximação dos dois, eu disse ao índio Pataxó que esse rapaz era também um índio, da Amazônia, um "primo" dele. Ambos sorriam e tirou-se a foto que vocês vêem acima.
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O mais incrível desta história, no entanto, não se vê nesta imagem, pois ocorreu logo após ela ser tirada. Florêncio tirou de sua mochila um colar de tucumã (semente amazônica usada para o artesanato indígena), aproximou-se do jovem Pataxó e disse-lhe, "Na minha cultura, a gente nunca aceita algo sem reciprocar o gesto, portanto eu lhe agradeço pelo uso da imagem (a foto) com este colar do meu povo." Que supresa! Que gesto! O índio Pataxó certamente não havia vivenciado isso ainda, pois emocionou-se, abraçou-o fortemente, pediu que ele aguardasse um momento ali, saiu correndo e voltou com uma pulseira Pataxó feita de sementes de pau-brasil para ele, abraçaram-se novamente e logo o índio Pataxó o chamava de irmão! Foi cena bonita de se ver.
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Nós, antropólogos, ficamos todos olhando aquela cena com a alegria que sempre nos envolve ao depararmo-nos com outros padrões culturais, mas também com uma leve tristeza da constatação de como pode ser pobre a nossa cultura em relação à deles. Havíamos pago a taxa de entrada para visitação da Reserva e, claro, isso já nos dava o direito de tirar quantas fotos quiséssemos. Nem ocorreu a nenhuma de nós estabelecer ali laços de outra natureza. A pungência daquele outro laço que ali se formara entre o Pataxó e Florêncio encheu nossos olhos pela sua magnificência.
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Alguns dias depois, já restituída à paulistanidade, sentada sob as sombras floridas do Café da Livraria da Vila, eu tomava um café expresso perfeito (daqueles que a cultura indígena não sabe nos proporcionar!) com um amigo de um amigo e ouvi ele dizendo "É o consumo que sustenta a nossa sociedade." Concordei com ele, claro, como não? Mas, me recordei instantâneamente da interação entre Florêncio e o indio Pataxó, das sociedades cuja sustentação dá-se através dos laços de reciprocidade que se estabelecem entre as pessoas ao invés do consumo. Claro, recordei-me de Mauss, discípulo de Durkheim, que é o grande teórico desta área de reciprocidade, seu livro mais famoso chama-se "O Presente." A recordação me alegrou, o conhecimento sobre Mauss também, foi saber da existência da alteridade é uma fonte de felicidade.
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Obrigada Florêncio!