segunda-feira, 12 de novembro de 2007

Moema Beach

Esses dias me ligou Patrícia, animadíssima, me chamando para ir até sua loja de sapatos favorita, “Está uma liquidação incrível, você não pode perder!” Minha reação instintiva foi pensar que eu certamente poderia perdê-la, afinal não precisava de sapato algum. Além do mais, domingo é meu dia de ficar em casa descansando, tomar café-da-manhã com calma lendo o jornal. Mas, Patrícia é uma graça, sempre me divirto com ela, e tamanha era a sua empolgação que eu acabei resolvendo acompanhá-la. Ela ficou felicíssima, disse que passaria para me buscar em alguns minutos e tchau, desligou o telefone. Voltei ao artigo que havia iniciado logo antes dela ligar, sobre a situação das mulheres muçulmanas na Índia, me entreti com outros artigos na mesma página e quando me dei conta o interfone já tocava na cozinha anunciando a chegada de Patrícia. Corri até o quarto, mergulhei num jeans, pus uma sandalha confortável e corri até o portão.

Patrícia estava toda arrumada àquela hora da manhã, com os cabelos loiros presos num rabo de cavalo bem puxado, argolas douradas, uma blusa de estampa de formas geométicas vazada nas costas, um jeans da moda e uma bolsa grande. Saudei-a e ela continuou a catequese, “Soninha, você vai amar esta loja – ela é tudo!” Sorri comigo mesma ao ouvi-la usando esta expressão “é tudo” porque foi ela mesma quem me introduziu-a. Confesso que passei a usá-la em relação a algumas coisas, mas pensar que uma loja pudesse ser “tudo” eu considerei uma extensão exagerada do uso da expressão. Enfim, ela continuou a me explicar como que nesta loja tudo era muito mais barato e da melhor qualidade, como ali eu encontraria sapatos que no Shopping custava trezentos reais por noventa ou até oitenta reais se déssemos sorte. A diferença de preço era ainda maior nos sapatos para a noite!

Já na esquina da rua percebia-se um trânsito inusitado para um domingo de manhã. Muitos carros enfileirados para serem entregues nas mãos de algumas dezenas de manobristas com camisetas amarelas que corriam de um lado para o outro tentando evitar o engarrafamento total na pequena rua e permitir as clientes, na maioria mulheres, entrarem no pequeno templo da moda de calçados de Moema. Alguns poucos homens seguiam o rastro de suas mulheres portando o semblante dos condenados à forca, principalmente os que haviam nitidamente sido escalados para a incumbência de cuidar de crianças.

Ao entrar na loja o visitante depara-se com uma imagem realmente espetacular, semelhante àquela dos garimpeiros de Serra Pelada, pois ali se atracam algumas centenas de mulheres entre alguns milhares de pares de sapatos de todas as cores, tamanhos e formatos, expostos em largas prateleiras. Já na entrada, cada cliente recebe uma grande sacola verde aonde pode ir guardando as preciosidades com as quais for se deparando. Ali dentro daquele universo nervosamente feminino os homens logo adquirem uma cor pálida e, como não há cadeira nenhuma para eles, transformam-se numa espécie de pilares de cera moribunda, aguardando o momento de cumprir sua função naquele empreendimento – o pagamento.

Patrícia, que já vinha bastante excitada, ficou alucinada naquele habitat. Garimpeira experiente logo se pôs a me explicar as regras do jogo. Eu deveria ir até o meu número, mas não precisaria me prender a isso, pois às vezes as melhores peças estavam expostas em outro número (que não o meu), mas eu poderia pedir para a responsável pelo meu número procurar um modelo igual para mim no estoque. Nem todas ali sabiam da existência do estoque. Ela iria começar pelo seu número verdadeiro, o 37, mas logo passaria pelo número 38 e 39. Disse-me ainda que o 40 sempre guarda grandes surpresas, pois menos mulheres têm o pé tão grande. “Qual o seu número?” ela me perguntou. Disse-lhe que meu número era 35 e ela exclamou, “Sortuda!” Apostava que eu encontraria mais coisas do que ela, pois a maioria das mulheres são 37, o que tornava tudo mais difícil.

Determinada, ela agarrou-se a sua sacola verde e mergulhou no universo do 37. Eu fiquei ali na prateleira do 35 e mirei a enorme diversidade de sapatos. Havia sapatos de toda espécie: salto alto, salto baixo, salto médio, salto quadrado, salto Anabela, salto retangular, salto em formato de bola, salto pontudo, salto triangular e até salto sem salto. Em termos de cores, a variedade não era menor, sapatos amarelos, roxos, laranja, prateados, verde musgo, cinzas, inúmeros pretos, brancos (para as médicas, imaginei eu), de bolinhas, de estampas floridas, de onçinhas, de zebras, etc. Nem tampouco faltavam texturas, pois havia sapatos de camurça, de verniz, de couro, de plástico, de tecido, de jeans, de palha, de plástico, de pedrinhas, uma festa até mesmo para alguma mulher cega que se aventurasse por ali.

Não sei bem porque, mas aquela diversidade toda de sapatos me deixou confusa. Em meio ao fascínio que a loja exerce até mesmo nas mulheres menos ‘sapatófilas’ e, dado que Patrícia havia dito que eram tão baratos, pensei em comprar um par para agradá-la. Mas, de repente, não conseguia mais distinguir entre eles. Pareciam-me ora todos muito bonitos e ora todos horrorosos. Tentava me lembrar das peças de roupa que tenho no meu guarda roupas, para ver se algo combinaria com alguma peça atualmente sem par, mas minha mente não conseguia resgatar nenhuma imagem do passado. Tentei lembrar-me dos sapatos que tinha em casa e nem mesmo um consegui recordar. Estavam obliterados da minha memória, agora totalmente tomada pelas centenas e milhares de pares ativos na minha frente.

Logo apareceu Patrícia com sua sacola verde já repleta de pares, “Menina, você não vai imaginar o que eu encontrei. Olha só esse sapato de lezar roxo com strass no salto, só cento e cinqüenta reais! E essa botinha azul petróleo - um luxo, só duzentos e oitenta reais. No Shopping você pagaria no mínimo seiscentos reais! Essa sandalha prateada eu quase passei mal, veja que sexy! E esse chinelinho está na promoção, achei uma graça para ir para a praia, só cinqüenta!” De repente, ela se deu conta, horrorizada, de que minha sacola verde ainda estava vazia. “Que sem graça essa sacola! Você não esta encontrando as coisas? Quer ajuda?” Eu respondi que estava só mesmo olhando, pois afinal não precisava de sapato algum. Ela me olhou como se houvesse diagnosticado uma espécie rara de lepra e disse, “Sônia, você não está entendendo, isso aqui não acontece todo dia. Esta liquidação é só quatro vezes por ano! Você tem que aproveitar!”

O conceito de aproveitar de Patrícia me era estranho. Aproveitar exatamente o que? Aproveitar para comprar sapatos que eu não precisava? Sem querer assustá-la disse-lhe, “Mas Patrícia, não estou precisando de sapatos.” Sua resposta estava na ponta da língua, “Minha filha, quem é que precisa de sapatos? Só um pobre! Se fosse por precisar, não haveria ninguém aqui nesta loja. Ninguém compra sapatos só porque precisa.” Sem querer entrar no mérito da questão, disse lhe somente, “Eu já tenho os sapatos que preciso, Patrícia. De verdade. Só se encontrasse algo muito especial.” Senti o ar de desapontamento mais absoluto no seu olhar. Um pouco desconcertada ela disse-me que iria olhar as bolsas enquanto eu terminava de olhar os sapatos e saiu ainda mais agitada.

Fiquei ali no 35 observando o comportamento de todas aquelas mulheres. Pegavam diversos pares ao mesmo tempo e iam experimentando-os até mesmo em pé, dada a lotação dos bancos. A maioria trabalhava em duplas e sempre perguntavam umas para as outras se estava bom, “Olha Rê, não é lindo?”, “Olha Ká, não é chiquéssimo?”, “Marcinha, imagina esse sapato com uma saia preta!” Entendi que aquela atividade era mais divertida quanto praticada em duplas e pensei que Patrícia ficaria triste se eu não comprasse nada. Voltei meu olhar para as prateleiras até que encontrei um sapato que considerei simpático, com um trançado em roxo e amarelo diferente, salto nem alto nem baixo, um preço razoável, coloquei-o na sacola verde sem mesmo experimentar.

Direcionei-me até o setor de bolsas aonde vi Patrícia disputando acirradamente numa baia de bolsas vermelhas em promoção – Bota Fora de Bolsas Vermelhas - dizia o cartaz. A sacola verde cheia de sapatos atrapalhava-a de chegar até a beira da baia de exposição, mas ela conseguia puxar um e outro modelo estendendo os braços por entre as outras competidoras. Terminou por selecionar duas bolas vermelhas, uma para ela e outra para a irmã que faria aniversário na semana seguinte. Colocou as bolsas dentro da sacola e finalmente me viu à sua espera.
“Achou alguma coisa?” Eu respondi que sim, que havia gostado de um sapato. “Deixa eu ver.” Meu sapato não a impressionou. Ela me mirou com seus olhos bem delineados e disse, “Só esse Sô, mas é tão simplezinho. Aqui tem tanta coisa bonita, não acredito que você só vai levar isso. Não têm presentes para dar? Ninguém vai fazer aniversário? O Natal está logo aí, hein!” Eu disse-lhe que por hoje seria só esse. Ela balançou os ombros como se rendesse o último fio de esperança em relação a mim.

Direcionamo-nos até a fila que fazia várias voltas, num sistema já perfeitamente desenvolvido para comportar o fluxo de clientes ávidas por garantir suas compras. Nas paredes as formas de pagamento eram devidamente anunciadas e também as restrições em relação a trocas. Muitas mulheres aproveitavam a espera para espionar as sacolas das outras e certificar-se de que não havia lhes passado despercebida nenhuma grande oferta. Qualquer coisa ainda haveria tempo. Secretamente, regorjizavam de seus talentos quando miravam as compras menos apetitosas que as outras fizeram.

Chegando a nossa vez, Patrícia pagou em seis vezes sem juros o valor de mil e trezentos reais. Meu sapato custou sessenta e oito reais, que paguei em dinheiro vivo. Patrícia abraçou suas sacolas com prazer e eu disse ao moço do balcão que não precisaria da sacola, pois colocaria meu sapato dentro da minha bolsa. Ambos me olharam surpresos.

Na saída, havia montada uma verdadeira infra-estrutura para levar as clientes de volta para seus carros. Como o estacionamento ao lado da loja já estava saturado, havia agora um micro-ônibus que nos levaria até o estacionamento J situado dois quarteirões acima. Ficamos na fila do micro-ônibus que nos levaria até estacionamento por uns dez minutos. Nesta hora, passado o pico da excitação com as compras, Patrícia e eu conversamos um pouco.

Perguntei-lhe como iam as coisas e ela me disse que ia tudo bem, tudo ótimo, estava sempre muito animada. Perguntei se ela continuava fazendo programas noturnos com executivos estrangeiros. Ela disse que sim, pois as despesas de casa eram muitas e não conseguiria cobri-las com seu salário de dois mil e quinhentos reais, principalmente porque seu irmão, segundo ela, era um vagabundo que só estudava. “Alguém tem que trabalhar, não é?” Meus olhos descansaram sobre seus ombros queimados de sol e as sacolas repletas de sapatos enquanto fiz algumas contas na cabeça. Seus olhos buscaram resposta nos meus e, desta vez, quem mirou como quem via uma assombração fui eu.

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