quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

Monumento Luz

.............................................Para Nicolau Kietzmann

Que estou plenamente despida em meio à Cidade Luz, isto se vê a olhos nus. O mais instigante é saber como tudo começou. Vou contar-lhes, vou contar a todos os habitantes desta cidade e do mundo! Inclusive porque esta cidade não será mais a mesma, não após este ocorrido. Nada toca sem ser tocado e esta cidade me tocou então está feito. Sem mais, conto-lhes tudo agora!

Começou na madrugada, esta hora sem rédeas, não eram nem cinco horas da manhã e eu mirava o céu lilás-cinza, tonalidade de esquisitice belíssima, entremeado pelos galhos das árvores já despidas para o outono, estação que é a minha também. Fazia isso livremente, pois é hábito meu de viagem conhecer as horas pouco visitadas da vida.

Do banco verde-petróleo que me acolhia avistei um jogger, disciplinado esportista, que até mesmo em pleno Novembro europeu sai às ruas para exercitar-se. Ele vinha saltitante e, de repente, acreditem que foi assim sem mais e nem menos, ele sumiu! Isso mesmo. Sumiu um sumir estranho em que o resto todo quedou e só ele empalideceu da vida como uma aquarela. O mais curioso foi que ele continuou correndo, isto é, a sua silhueta, como se um vão de luz ouvesse usurpado-o. Dá para imaginar?

Eu não dei bola, de primeiro. Era cedo, como lhes disse, eu ainda sonolenta, poderia ser sonho ou alucinação, por isso pouco me importei. No entanto, logo veio a confirmação de que algo diferente realmente estava acontecendo. Avistei uma mulher levando na guia um cão galgo. Ela cruzou o boulevard inteiro, atravessando de um extremo ao outro do meu campo de visão, absolutamente fantasmagórica. Entrou pela esquerda como vão de luz e saiu pela direita como vão de luz. Coçei os olhos. Fechei-os por alguns instantes por descanso, ainda pensando não ser nada demais. Na escuridão, veio-me a doce lembrança de estarmos correndo juntos no parque, eu e o meu amor, em outro tempo, outro espaço longínquo. Lembrei também de nossos passeios com os cães nas manhãs quente da que é a minha terra. Aconchegada nesta lembrança, apesar do frio estático e a rigidez do banco da praça, eu adormeci.

Este poderia ter sido o início e o fim da história, mas não foi e é por isso que lhes conto-a em pleno detalhe. Acordei quando o dia já neblinava e resolvi dar um passeio pelo bairro que é o meu favorito. O Les Marais, particularmente no entorno da Place de Vosges, sempre me encantou com sua música de esquina, os ângulos mouriscos de seus arcos, a cor areia de suas pedras e o artesanal de seu comércio. É como se o bairro sobrevivesse a Revolução Industrial em pleno coração da Europa. Caminhei despreocupada para ver a praça, apressei-me em sua direção e eis que lá avistei os casais sempre enamorados deitados nos bancos. Instantâneamente, claro, lembrei daquele que é o meu amor e, de repente, surpreendentemente, os casais empalideceram assim como os joggers de antes. Não desapareciam de todo, entendam! Seu contorno permanecera intacto, seu recheio é que cedera, restando o vão de sua luz.

Abismada, no centro da praça, observei-os indo um a um. Todos os casais dali, todas as cenas de ternura cediam ao encontro do meu olhar, como num fantástico jogo de dominó. Não tive medo. Não é um fenômeno de assustar, acreditem. É só estranho, mas não assusta e, curiosamente, engrandeçe. Fiquei ali um longo tempo pensando em como seria bom estar ali com ele, como o meu amor, e ver preencher cada um daqueles vãos com o nosso riso. Passei a sorrir sozinha, meio ao inverno gélido, enquanto as lágrimas congelavam estalactites sobre minha face.

O tempo passou e resolvi partir em revoada. Mal caminhei meio quarteirão e uma moto preta estacionada na frente do Musée Carnavale, igualzinha a do meu amor, desapareceu! Da mesma forma que os outros. Após o desaparecimento em duas rodas, cada motoqueiro que passava parecia voar sobre um pássaro branco, pois com aquela primeira foram-se todas as motos da cidade ou do mundo (eu não sabia o quão avassalador seria este fenômeno)! Pensava em como teríamos nos divertido numa destas vespas por aqui, enquanto a cidade tornava-se notadamente distinta do usual esses empalidecimentos. Ainda assim, não tive medo. O coração aceitou bem a mudança, sentia-o crescendo dentro de mim, com o pulsar de um polvo do mar.

Aos poucos, o fenômeno foi tomando conta de tudo. O meio fio aonde o meu amor, este mais despojado de todos os seres gosta de sentar-se (e o faz com todo o charme), foi-se! Restaram as ruas e as calçadas, por onde eu caminhava, como que suspensas no vão. Seria um sonho surrealista? Passei a achar aquilo emocionante! O céu brilhava chamando minha atenção para o alto dos prédios parisienses. Cada ruela desta cidade tem sua gola invertida rendada por apartamentos com varandinhas repletas de flores e estas flores, as mesmas que meu amor cultua, começaram a empalidecer também da vida, uma a uma, enquanto eu sonhava em como teria sido se um destes batimênts tivesse sido o nosso pouso, canto para um vinho ao luar e paixão contra as grades. Prédios de apartamentos inteiros uniam-se ao vão de luz iniciado pelo esportista, as motos e os amantes da Place des Vosges.

Comecei a compreender que havia relação entre o amor, este dentro do meu peito, e aqueles empalidecimentos na cidade luz, mas não ousei interpretar nada. Quem sou eu para isso? Soube que cada detalhe que me lembrasse do meu amor, este homem que amo, empalideceria frente aos meus olhos, como se não fossem merecedores de cor plena ou vida uma vez que não realizariam sua vocação de cenário para o nosso amor. Aceitei isso, que a força do meu sonho era maior do que eles. Creio que eu roubava-lhes a luz e trazia toda sua força vital para o meu coração que ia inchando e inchando. Sendo assim, eu caminhava cada vez mais alegre e desenvolta pelas ruas suspensas, agindo sem pudor algum em roubar esquinas e os trechos mais românticos das pontes que costuram o Rio Seine. Exaltava-me!

Entrei no Jardin du Luxemboug e, imediatamente, todos os pares de cadeiras verde-água empalideceram. Quem nelas sentava, caiu de bunda ao solo! Cada chemin de promenade, margeado das folhas amarelas de outono, aonde teríamos caminhado alegremente, esvaia-se. Os pombos gordos, eu corria atrás deles e eles logo decolavam para o grande vão, pois teríamos corrido atrás deles juntos. Eu ria, enquanto o cenário ia-se quase todo! Restaram somente as estátuas de pedra com sua empáfia, imunes ao meu calor interior, imortais, sem compreender o que é vida.
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Era meados da manhã quando perambulei até um bistrô na beira do Jardin. Sentei-me numa mesinha próxima à janela, mas o assento vazio na minha frente era convite aberto para imaginar os olhares que teríamos trocado, as mãos entrelaçadas que teríamos tecido, os croissants crocantes que teríamos mordiscado, o vinho aveludado que teríamos escolhido, os profiteróles mergulhados em chocolate com o qual teríamos nos lambuzado. Não pude manter o menu aceso em minhas mãos por mais de dois minutos. Logo ele foi-se junto com a cadeira que seria dele, a mesa que seria nossa, foi-se até o garçon que faria brincadeiras de nós apaixonados e, aos poucos, foi-se o restaurante todo!

Com a rendição de quase tudo ao vão de luz, passei a caminhar por uma cidade suspensa aonde só restavam os monumentos, frios como as estátuas do Jardin. Eu conseguia ver de longe o Palais Royal, a Tour Eiffel, o Arc de Triomphe, os únicos intocados pela minha trajetória, rochas esculpidas pelos homens somente para lembrar às gerações das glórias das guerras, das vitórias retumbantes da grande nação e seus territórios conquistados. Achei-os feios, pois sou daquelas que pensa que guerra alguma produz vencedores, ao invés, produz somente múltiplos perdedores. Ao final de cada guerra, creio eu, devia-se chorar um rio sobre um leito de sementes para fazer crescer uma floresta. Devia-se desejar que esta floresta jamais testemunhe outra guerra, mas sim um mundo mais flexível, à imagem de seus hastes vegetais.

Fui caminhando e caminhando, já numa espécie de transe, em direção à Tour Eiffel, como se fosse um chamado. Confesso que foi só mesmo quando cheguei bem próxima a ela que dei-me conta da minha nudez e da transformação em meu tamanho. As roupas haviam se estilhaçado com meu crescimento. Eu não mais cabia dentro delas e nem tampouco precisava, pois o que me mantinha aquecida era outro calor. Eu havia tornado-me um ser gigante, estava da altura da Tour Eiffel, constatei. Como quem sabe o que faz, caminhei até ela e abri meus braços, como que para um grande abraço, e desafiei-a: “Aprenda Amor”. Minha voz ecoou tão fortemente que o ruído herculeano tomou de assalto cada boulevard e galeria da cidade inteira, ressoando de tal forma que eu mesma senti o impacto do retorno de minha voz como um tiro de canhão. Nunca antes dissera isto e nunca antes dissera nada com tal força. Era o anúncio de uma nova era.

Ela não respondeu. Ficamos lado a lado por um tempo, nos mirando. Minha pele branca rangia no vento frio, mas meu coração era tão gigante que eu não sentia dor, somente alegria. Vi então que tratava-se de um embate, pois restavam na cidade somente nós: eu, desta espécie na qual me transmutara, do amor, monumento personificado em vida, e ela, da guerra, monumento estilizado em morte, cada qual comemorando seu motivo. De repente, como que incomodada com a brisa que me parecia até doce, ela cedeu, a Tour Eiffel cedeu, seus notórios andaimes despedaçaram-se como pequenos fósforos e sua cúpula veio ao chão partindo-se em dois. O amor é de tal forma risível e repete-se (eu te amo, eu te amo, eu te amo...), mas quem não daria tudo, hoje, para tê-lo, verdadeiramente, nem que por um segundo? Ele é mais forte que a nação e qualquer idéia, hoje sim.

Pois, foi nesta hora que eu acordei, meus caros, e isso tudo faz somente alguns poucos minutos, foi justo antes de sentar-me para começar a escrever para contar-lhes essa história fabulosa. Talvez tenha sido um sonho (é o mais provável), mas quando olhei no relógio, justo agora, vi que já era, quero dizer que já é o dia seguinte. Não sei se foi o fuso, se dormi 24 horas ou 24 segundos, só sei que já é novamente madrugada e que elas, as madrugadas, são para mim assim. Nelas nunca sabe-se se é ontem ou hoje e isso as torna o tempo do sublime. As madrugadas foram criadas para serem habitadas pelo amor, pois é hora sem rédeas
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Um comentário:

Anônimo disse...

lindo texto.