Há poucas coisas no mundo que me fazem tão feliz quanto passar a tarde balançando na minha rede azul-piscina no Parque do Ibirapuera. Estar ali é não querer mais nada na vida além de simplesmente estar ali, cercada dos mais luminosos tons de verde da paleta, enquanto protegida dos raios mais agudos do sol pela desenvolta teia de galhos e folhas, somente sentindo as carícias do vento no vai-e-vem da rede.
.....Por esta razão, alguns dias atrás, eu fui revisar o manuscrito do meu recém-concluído livro de crônicas no idílico redário. Cheguei lá pela manhã e fiquei lendo tranqüilamente até o início da tarde, quando chegou uma mãe com um grupo de três crianças pré-adolescentes e instalou-se numa rede vermelha ao lado da minha.
.....Que a chegada deles significou o fim do meu sossego, já se pode imaginar. O paraíso em terra adquiriu trilha sonora de gritos estridentes, choros soluçantes e acidentes domésticos sangrentos. De início, eu estava tão compenetrada na minha atividade, que nem me incomodei.
.....Em algum momento, no entanto, uma sequência de gritos regulares, em crescendo, me chamou a atenção. Voltei-me para as três crianças montadas na rede, balançando-a até o ponto máximo possível e, por isso, as expressões alternadas de diversão e pânico. Faziam-no como um coral desarvorado, enquanto testavam os limites da gravidade, até que, como era de se prever, uma delas voou da rede, caiu de cabeça no chão e começou a chorar. A mãe veio correndo da mesinha de pic-nic aonde se refugiara da companhia dos filhos e acolheu o menino machucado. Por um tempo, pairou a calmaria.
.....Meia hora depois, ouço um novo sonido “Póh”. “Póh” soou um chute ainda mais forte. “Póh” e as crianças corriam de um lado para o outro atrás da bola, “Póh. Póh.” cada um buscando dar um chute mais forte do que o outro. “Póh, póh, póh” até que a bola quase acertou um bebezinho de dois meses sentado no chão. A mãe do bebê chamou-lhes a atenção, elas afastaram-se um pouco, mas continuaram os chutes. Ainda não haviam causado suficiente dano. “Póh, póh, póh” e a bola sobrevoou a minha rede em rasante. Eu protestei, “Por que vocês não vão jogar na quadra de futebol? O redário não é lugar para jogar bola.” Um deles, o mais educado, acatou, mas o outro mais endiabrado imitou a minha fala com ironia. Sei que, eles continuaram chutando até que ouço um super “PÓH” e um som abafado seguido de um choro agudo. A bola havia atingido um deles na cara e o sangue escorria do seu nariz. Após isso, por um tempo, pairou a calmaria.
.....O resto da tarde seguiu o mesmo roteiro. Após tempos intervalos de calmaria, nos quais eu aproveitava para retomar minha leitura, as crianças se engajavam em uma nova atividade até encontrarem o limite. Jogaram copos d’água uma nas outras até ficarem todas molhadas, arrancaram flores dos jardins até o guarda chamar-lhes a atenção, deram rasteiras umas nas outras até uma delas cair de boca. Conclui que o negócio delas era engajar-se em uma atividade arriscada até uma delas se machucar ou levar uma bronca; então acalmavam-se; logo depois, recomeçavam.
.....Como o meu bom-humor estava realmente inabalável naquele dia, ao invés de ficar irritada, eu resolvi fazer uma reflexão filosófica e evolucionista sobre aquilo. Porque as crianças faziam aquilo? Porque era tão difícil elas simplesmente apreciarem o estar ali umas com as outras e brincarem em harmonia? Claro que, nesses tempos de guerra, pensei que este fenômeno, esta dificuldade de viver em harmonia, não afeta somente as crianças, mas também os adultos. Isso me instigou ainda mais a buscar uma explicação daquele comportamento infantil, que pudesse servir de explicação para outros males da humanidade.
.....A teoria que postulei, eu compartilho com vocês. A inquietação do ser humano, esta inabilidade de simplesmente estar bem, é o que tornou-nos uma espécie tão dominante na terra. Por causa dela, estamos sempre buscando coisas novas, experimentando e inventando moda. É o ímpeto do “sempre mais”. O ser humano não consegue nunca “chegar” a lugar nenhum, pois seu ponto de chegada se re-constitui como uma nova largada. Há algo que nos impulsiona compulsivamente a novos desafios e o fazemos até “quebrar a cara.” Daí sim, recuamos, damos "um tempo", mas logo que podemos retomamos.
.....Nas crianças do parque, ficava nítido o quanto que esse comportamento é compulsivo e, sem medida, torna-se nocivo. Na vida adulta, o que muda é somente a qualidade das atividades nas quais engajamo-nos. Os cientistas querem sempre inventar algo novo, os assaltantes querem sempre roubar mais um banco, os donos de franquia querem sempre abrir mais uma, os militares querem sempre conquistar um novo território, as vendedoras querem sempre vender mais uma peça, os jornalistas querem sempre uma matéria de mais destaque. Trata-se da mesma coisa: uma inabilidade de conquistar uma coisa ficar bem com isso.
.....Por um lado, esta habilidade é o que fez do homo sapiens uma espécie tão dominante na terra. Notem que digo dominante e não exitosa, pois sabemos que o êxito evolucionista do ser humano é contraditório, pois ele evoluiu a ponto de dominar a terra demográfica e tecnológicamente, no entanto, pela mesma lógica, está levando-a rumo à destruição completa. Para ele, para nós (porque penso ser algo compulsivo e instintivo em todos nós) isso pouco importa. Quando conseguirmos destruir a maior parte da terra, os poucos que restarem vão chorar um pouco, talvez acalmem-se por um período, mas logo retomarão à atividade. Sua compulsão é por criar até destruir, criar até destruir, incessantemente, em detrimento da inquietação, o tédio e a ansiedade. Este é o ser humano.
.....Penso que, neste fim de século, caberia uma adaptação ao homo sapiens. Assim como as primeiras girafas pescoçudas que Darwin tão bem explicou, há se surgir um ser humano sem este ímpeto que o caracteriza. Um ser humano que saiba conquistar, mas também viver em harmonia e saber quando o suficiente é o bastante. Neste almejado ápice do processo civilizatório, ele há de escrever um livro, erguer uma rede em um parque arborizado (neste novo mundo, certamente sobrarão algumas árvores), deitar-se nela e saber descansar em harmonia! É a grande sabedoria civilizatória que falta no mundo. Eu, como ainda sou girafa sem pescoço, levantei da rede e vim escrever mais uma crônica!
.....Por esta razão, alguns dias atrás, eu fui revisar o manuscrito do meu recém-concluído livro de crônicas no idílico redário. Cheguei lá pela manhã e fiquei lendo tranqüilamente até o início da tarde, quando chegou uma mãe com um grupo de três crianças pré-adolescentes e instalou-se numa rede vermelha ao lado da minha.
.....Que a chegada deles significou o fim do meu sossego, já se pode imaginar. O paraíso em terra adquiriu trilha sonora de gritos estridentes, choros soluçantes e acidentes domésticos sangrentos. De início, eu estava tão compenetrada na minha atividade, que nem me incomodei.
.....Em algum momento, no entanto, uma sequência de gritos regulares, em crescendo, me chamou a atenção. Voltei-me para as três crianças montadas na rede, balançando-a até o ponto máximo possível e, por isso, as expressões alternadas de diversão e pânico. Faziam-no como um coral desarvorado, enquanto testavam os limites da gravidade, até que, como era de se prever, uma delas voou da rede, caiu de cabeça no chão e começou a chorar. A mãe veio correndo da mesinha de pic-nic aonde se refugiara da companhia dos filhos e acolheu o menino machucado. Por um tempo, pairou a calmaria.
.....Meia hora depois, ouço um novo sonido “Póh”. “Póh” soou um chute ainda mais forte. “Póh” e as crianças corriam de um lado para o outro atrás da bola, “Póh. Póh.” cada um buscando dar um chute mais forte do que o outro. “Póh, póh, póh” até que a bola quase acertou um bebezinho de dois meses sentado no chão. A mãe do bebê chamou-lhes a atenção, elas afastaram-se um pouco, mas continuaram os chutes. Ainda não haviam causado suficiente dano. “Póh, póh, póh” e a bola sobrevoou a minha rede em rasante. Eu protestei, “Por que vocês não vão jogar na quadra de futebol? O redário não é lugar para jogar bola.” Um deles, o mais educado, acatou, mas o outro mais endiabrado imitou a minha fala com ironia. Sei que, eles continuaram chutando até que ouço um super “PÓH” e um som abafado seguido de um choro agudo. A bola havia atingido um deles na cara e o sangue escorria do seu nariz. Após isso, por um tempo, pairou a calmaria.
.....O resto da tarde seguiu o mesmo roteiro. Após tempos intervalos de calmaria, nos quais eu aproveitava para retomar minha leitura, as crianças se engajavam em uma nova atividade até encontrarem o limite. Jogaram copos d’água uma nas outras até ficarem todas molhadas, arrancaram flores dos jardins até o guarda chamar-lhes a atenção, deram rasteiras umas nas outras até uma delas cair de boca. Conclui que o negócio delas era engajar-se em uma atividade arriscada até uma delas se machucar ou levar uma bronca; então acalmavam-se; logo depois, recomeçavam.
.....Como o meu bom-humor estava realmente inabalável naquele dia, ao invés de ficar irritada, eu resolvi fazer uma reflexão filosófica e evolucionista sobre aquilo. Porque as crianças faziam aquilo? Porque era tão difícil elas simplesmente apreciarem o estar ali umas com as outras e brincarem em harmonia? Claro que, nesses tempos de guerra, pensei que este fenômeno, esta dificuldade de viver em harmonia, não afeta somente as crianças, mas também os adultos. Isso me instigou ainda mais a buscar uma explicação daquele comportamento infantil, que pudesse servir de explicação para outros males da humanidade.
.....A teoria que postulei, eu compartilho com vocês. A inquietação do ser humano, esta inabilidade de simplesmente estar bem, é o que tornou-nos uma espécie tão dominante na terra. Por causa dela, estamos sempre buscando coisas novas, experimentando e inventando moda. É o ímpeto do “sempre mais”. O ser humano não consegue nunca “chegar” a lugar nenhum, pois seu ponto de chegada se re-constitui como uma nova largada. Há algo que nos impulsiona compulsivamente a novos desafios e o fazemos até “quebrar a cara.” Daí sim, recuamos, damos "um tempo", mas logo que podemos retomamos.
.....Nas crianças do parque, ficava nítido o quanto que esse comportamento é compulsivo e, sem medida, torna-se nocivo. Na vida adulta, o que muda é somente a qualidade das atividades nas quais engajamo-nos. Os cientistas querem sempre inventar algo novo, os assaltantes querem sempre roubar mais um banco, os donos de franquia querem sempre abrir mais uma, os militares querem sempre conquistar um novo território, as vendedoras querem sempre vender mais uma peça, os jornalistas querem sempre uma matéria de mais destaque. Trata-se da mesma coisa: uma inabilidade de conquistar uma coisa ficar bem com isso.
.....Por um lado, esta habilidade é o que fez do homo sapiens uma espécie tão dominante na terra. Notem que digo dominante e não exitosa, pois sabemos que o êxito evolucionista do ser humano é contraditório, pois ele evoluiu a ponto de dominar a terra demográfica e tecnológicamente, no entanto, pela mesma lógica, está levando-a rumo à destruição completa. Para ele, para nós (porque penso ser algo compulsivo e instintivo em todos nós) isso pouco importa. Quando conseguirmos destruir a maior parte da terra, os poucos que restarem vão chorar um pouco, talvez acalmem-se por um período, mas logo retomarão à atividade. Sua compulsão é por criar até destruir, criar até destruir, incessantemente, em detrimento da inquietação, o tédio e a ansiedade. Este é o ser humano.
.....Penso que, neste fim de século, caberia uma adaptação ao homo sapiens. Assim como as primeiras girafas pescoçudas que Darwin tão bem explicou, há se surgir um ser humano sem este ímpeto que o caracteriza. Um ser humano que saiba conquistar, mas também viver em harmonia e saber quando o suficiente é o bastante. Neste almejado ápice do processo civilizatório, ele há de escrever um livro, erguer uma rede em um parque arborizado (neste novo mundo, certamente sobrarão algumas árvores), deitar-se nela e saber descansar em harmonia! É a grande sabedoria civilizatória que falta no mundo. Eu, como ainda sou girafa sem pescoço, levantei da rede e vim escrever mais uma crônica!
2 comentários:
Oi, querida. Feliz ano novo! Muito amor e sucesso! :-)
Compartilho com seus pensamentos e espero que consigamos nos acalmar e viver em harmonia...
(eu não teria ficado na rede mais 5 minutos...)
Saudade, beijo.
Rê Coltro
Girafa sem pescoço.
Finalmente entrei no blog depois de reencontrar-los no Ibirapuera...
Curioso, no mesmo dia, foi a primeira vez que eu havia reparado nas pessoas em deitadas na rede no Parque...me fez pensar muito, assim como seu texto.
O mundo civilizado nunca sera perfeito segundo a perspectiva de um individuo...sempre tera criancas que gritam quando necessitamos silencio. Ah! Tambem nunca vai eliminar os comportamentos intrinsicos basicos do ser humano.
É a perfeita imperfeicao...estara ai para sempre...
Beijos
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