quinta-feira, 20 de dezembro de 2007

Homenagem ao Poeta Anônimo

"Estou no mundo
vou inventado
e é mistério
.
reluzente
sobre o chão
o sexo do destino!
.
Camaradas, vamos
imperfeitos...
imperfeitos...
imperfeitos
.
encontrar outro mundo,
outra novidade
outra verdade
.
vamos"

Quadro Negro

.....Era noite de consciência negra na Praça da Sé, a galera reunida no entorno do palco para assistir aos shows. Naquela hora estava tocando Rappin’Hood, mas como havíamos ido para assistir Martinho da Vila passeávamos pelo espaço. Foi quando vimos um homem caído no chão, parecia não se sentir bem. Não dava para saber se era cachaça ou doença súbita. O homem não estava muito bem vestido, mas também não era um mendigo. Era negro, alto, vestido de forma simples e caído ao chão. Não podíamos deixá-lo ali sem fazer nada, portanto me aproximei de um policial comunitário, dentre algumas centenas deles que rondavam a praça, e notifiquei-o de que havia um senhor passando mal no chão. Ele perguntou aonde, eu apontei na direção certa. Ele disse que tomaria as providências. Demos mais algumas voltas, compramos uma cerveja e logo estávamos de volta aonde caíra o homem. Nesta hora, uma dupla de policiais já o cercava. Cutucavam-no com o pé e diziam-lhe, "Senhor? Senhor? Está se sentindo bem?" O homem jazia no chão, com expressão sofrida, mas ainda era difícil decifrar se tratava-se de cachaça ou doença súbita. Os policiais eram também negros, altos, mas vestiam uniforme da policia civil. Após alguns minutos de tentativas frustradas de diálogo, o policial líder da dupla retirou dos bolsos um par de luvas cirúrgicas e vestiu-as com cuidado. Não era óbvia a função das luvas, de fato nem mesmo formulei hipóteses. Muitos já observavam a cena. Luvas em dedos, o policial agachou-se próximo ao negro deitado e falou-lhe, "Vamos levantar?" Cirurgicamente agarrou o cós das calças do homem e puxou para que ele se erguesse. Mas o homem estava realmente mal, não conseguia dar resposta. Será que não haveria uma maneira mais adequada de levantar um homem do chão, que não puxando pelo cós das calças? Seria isso procedimento policial padrão? Não poderiam simplesmente abraçá-lo lado a lado e carregá-lo até o atendimento médico? Sei que a técnica usada não funcionou bem e era incomodo de se ver. O homem não se equilibrava, ao contrário, o puxão de mãos enluvadas parecia instabilizá-lo ainda mais e ele rolava de um lado para o outro. O policial, meio sem jeito frente a tantos espectadores, tornou-se nervoso e terminou por puxar de forma mais firme. O semblante de dor do negro caído se exarcebava desta forma e era triste ver. Meu companheiro naquela noite disse-me triste assim, "São irmãos, vejam como se tratam." Nisso fiquei a pensar nos irmãos negros, o policial e o homem caído ao chão. Na África ancestral talvez não fossem isso e sim inimigos de tribos distintas, mas a travessia do oceano certamente os tornou isso – irmãos de origem Africana, escravos brasileiros, mais tarde negros livres brasileiros, o que são até hoje. Alguns ascenderam socialmente, como o policial. Outros quedam ainda caídos no chão. E que má vontade do irmão ascendente em erguer o irmão caído, não? Parece que ele temia cair junto para o fundo do poço. Parece que temia algum tipo de contaminação (por isso a luva?). Parece que temia aquela imagem prostrada ao chão, temia ser algum dia exposto àquela dor, àquela derrota. Caminhamos para o outro lado da praça. Não era uma imagem bonita de se ver aquela, particularmente nesta data da Consciência Negra.
.
18 Dezembro 2007 (defasado em relação à data do ocorrido, Dia da Consciência Negra, 20 de Novembro, mas quem explica a origem da inspiração de sentar e escrever?)

terça-feira, 11 de dezembro de 2007

Humanitário ou Altermundista?

.....Encontrei um artigo muito legal do antropólogo francês Bernard Hors, cuja teoria central é que existe no mundo um “mercado de ajuda internacional”, que é a parte visível de um iceberg submerso de intenções e estratégias não tão transparentes, onde os países ricos à frente do processo de globalização conseguem gerenciar crises e instaurar uma moral controladora (ou colonizadora) nos países em desenvolvimento. Ele questiona: Como salvaguardar as diferenças, as “alteridades” dignamente, num mundo que se quer cada vez mais homogêneo?
.....Achei interessante a distinção que ele faz entre os "humanitários" e os "altermundistas", dizendo que ambos têm como objetivo de moralizar a globalização, mas usando meios diferentes. Os “altermundistas” têm uma visão mais politizada, os humanitários são mais impulsionados pela moral e pela emoção, dizendo-se “post-políticos”.
.....Me fez pensar que os "humanitários", pessoas imbuídas de boa vontade e movidas pela emoção, são particularmente problemáticas para sociedade porque creio eu que as intenções e estratégias que os guiam não são claras nem mesmo para eles! Sabe como é? Quantas pessoas conhecemos atuando em diversas ONGs, recolhendo doações para projeto x e y, particularmente nesta época do ano, mas que nem param para pensar estruturalmente no porque desta sua ação ser necessária e o impacto que ela vai ter.
.....Entre ser "humanitário" ou "altermundista" acho devemos todos aspirarmos a sermos altermundistas que, se compreendi corretamente, além de ser alguém que é defensor da "alteridade" (as diferenças) é ser um agente que é consciente de intenções políticas de suas ações e transparente ao explicitá-las para a sociedade. Isso, claro, implica o cuidado de não estar sendo um "humanitário" ingênuo.
.....Portanto, convido a todos a se questionar: a) Quais interesses políticos represento hoje? e b) Eu exerternalizo isso claramente para a sociedade? Boa reflexão!

sexta-feira, 30 de novembro de 2007

Murucututu



Um ode ao amigo, simbolizado aqui pelo pássaro Murucututu que, com seus olhos inquisitivos e apreensivos, representa a beleza deste ser - amigo.

sexta-feira, 16 de novembro de 2007

Tropa de Elite

.....Estive meio atrasada com as idas ao cinema, mas finalmente assisti Tropa de Elite, que me surpreendeu porque é um filme que me fez rir muito e ainda sair dele me sentindo revigorada! Particularmente, o treinamento nos "aspiras" para entrar no Bope me fez rolar de rir. Na hora ri sem pensar em porque eu ria, mas agora percebo que eram risos de alívio! O que permitiu o filme surtir esse efeito no espectador, na minha opinião, é a forma como foi construído o personagem principal. Trata-se de um policial assassino e desvairado, retratado de forma superficialmente multidimensional - porque tem um filho e um casamento prestes a desabar (e quem não tem?). Sua voz firme é que guia o espectador através de cenas contidas da mais absoluta violência, sempre dando a elas um raciocínio lógico, portanto confortante, ao espectador sentado em meio à balas perdidas. O ator, perdoem-me os fãs, não chegou a ter uma atuação brilhante, exceto na própria narração do filme, pois é ao seu tom de voz confiante que todos se apegam, enquanto vamos sendo apresentados ao caos que tornou-se nosso país. Ali em sua voz todo aquele caos faz sentido - ela nos explica uma dinâmica da favela e jamais questionamos sua veracidade, aos poucos passamos torçer quase que exclusivamente para que ela (ele, o policial) tenha logo êxito em aniquilar o traficante Baiano e tranformar um decente estudante de direito em mais um policial assassino, para que possa então cuidar de sua vida pessoal. Em nenhum momento o espectador questiona esse interlocutor, essa figura que torna-se onipresente, ao contrário, terminamos por tê-lo agora presente no nosso dia a dia, na mídia de TV, como referência querida ao ponto de fazer até propaganda de cerveja com Juliana Paes! Por esta razão, considero que trata-se um filme perverso. Seus semelhantes, como Cidade De Deus, utilizam-se menos de efeitos de conforto emocional e mais de efeitos de alienação, justamente para que o espectador sofra com o contato com a realidade exposta e, principalmente, não saia do cinema preenchido e aliviado com a situação.

segunda-feira, 12 de novembro de 2007

As Casas do Mundo

"Existem um milhão de casas no mundo, aliás muito mais do que isso, mas dentre todas essas há aquelas que chamam a atenção e enchem o nosso coração de vontade de um dia viver dentro delas. São as casas que convidam-nos a pensar que ali dentro vive uma família feliz. Vi hoje cedo uma casas destas - era bem verdinha, a tinta parecia ainda fresquinha, e era cercada de flores do campo e outras mais espivitadas. Quero constituir uma casa assim, para que o meu companheiro de vida se emocione a cada chegada ao lar por sentir-se abençoado em ali viver..."

Moema Beach

Esses dias me ligou Patrícia, animadíssima, me chamando para ir até sua loja de sapatos favorita, “Está uma liquidação incrível, você não pode perder!” Minha reação instintiva foi pensar que eu certamente poderia perdê-la, afinal não precisava de sapato algum. Além do mais, domingo é meu dia de ficar em casa descansando, tomar café-da-manhã com calma lendo o jornal. Mas, Patrícia é uma graça, sempre me divirto com ela, e tamanha era a sua empolgação que eu acabei resolvendo acompanhá-la. Ela ficou felicíssima, disse que passaria para me buscar em alguns minutos e tchau, desligou o telefone. Voltei ao artigo que havia iniciado logo antes dela ligar, sobre a situação das mulheres muçulmanas na Índia, me entreti com outros artigos na mesma página e quando me dei conta o interfone já tocava na cozinha anunciando a chegada de Patrícia. Corri até o quarto, mergulhei num jeans, pus uma sandalha confortável e corri até o portão.

Patrícia estava toda arrumada àquela hora da manhã, com os cabelos loiros presos num rabo de cavalo bem puxado, argolas douradas, uma blusa de estampa de formas geométicas vazada nas costas, um jeans da moda e uma bolsa grande. Saudei-a e ela continuou a catequese, “Soninha, você vai amar esta loja – ela é tudo!” Sorri comigo mesma ao ouvi-la usando esta expressão “é tudo” porque foi ela mesma quem me introduziu-a. Confesso que passei a usá-la em relação a algumas coisas, mas pensar que uma loja pudesse ser “tudo” eu considerei uma extensão exagerada do uso da expressão. Enfim, ela continuou a me explicar como que nesta loja tudo era muito mais barato e da melhor qualidade, como ali eu encontraria sapatos que no Shopping custava trezentos reais por noventa ou até oitenta reais se déssemos sorte. A diferença de preço era ainda maior nos sapatos para a noite!

Já na esquina da rua percebia-se um trânsito inusitado para um domingo de manhã. Muitos carros enfileirados para serem entregues nas mãos de algumas dezenas de manobristas com camisetas amarelas que corriam de um lado para o outro tentando evitar o engarrafamento total na pequena rua e permitir as clientes, na maioria mulheres, entrarem no pequeno templo da moda de calçados de Moema. Alguns poucos homens seguiam o rastro de suas mulheres portando o semblante dos condenados à forca, principalmente os que haviam nitidamente sido escalados para a incumbência de cuidar de crianças.

Ao entrar na loja o visitante depara-se com uma imagem realmente espetacular, semelhante àquela dos garimpeiros de Serra Pelada, pois ali se atracam algumas centenas de mulheres entre alguns milhares de pares de sapatos de todas as cores, tamanhos e formatos, expostos em largas prateleiras. Já na entrada, cada cliente recebe uma grande sacola verde aonde pode ir guardando as preciosidades com as quais for se deparando. Ali dentro daquele universo nervosamente feminino os homens logo adquirem uma cor pálida e, como não há cadeira nenhuma para eles, transformam-se numa espécie de pilares de cera moribunda, aguardando o momento de cumprir sua função naquele empreendimento – o pagamento.

Patrícia, que já vinha bastante excitada, ficou alucinada naquele habitat. Garimpeira experiente logo se pôs a me explicar as regras do jogo. Eu deveria ir até o meu número, mas não precisaria me prender a isso, pois às vezes as melhores peças estavam expostas em outro número (que não o meu), mas eu poderia pedir para a responsável pelo meu número procurar um modelo igual para mim no estoque. Nem todas ali sabiam da existência do estoque. Ela iria começar pelo seu número verdadeiro, o 37, mas logo passaria pelo número 38 e 39. Disse-me ainda que o 40 sempre guarda grandes surpresas, pois menos mulheres têm o pé tão grande. “Qual o seu número?” ela me perguntou. Disse-lhe que meu número era 35 e ela exclamou, “Sortuda!” Apostava que eu encontraria mais coisas do que ela, pois a maioria das mulheres são 37, o que tornava tudo mais difícil.

Determinada, ela agarrou-se a sua sacola verde e mergulhou no universo do 37. Eu fiquei ali na prateleira do 35 e mirei a enorme diversidade de sapatos. Havia sapatos de toda espécie: salto alto, salto baixo, salto médio, salto quadrado, salto Anabela, salto retangular, salto em formato de bola, salto pontudo, salto triangular e até salto sem salto. Em termos de cores, a variedade não era menor, sapatos amarelos, roxos, laranja, prateados, verde musgo, cinzas, inúmeros pretos, brancos (para as médicas, imaginei eu), de bolinhas, de estampas floridas, de onçinhas, de zebras, etc. Nem tampouco faltavam texturas, pois havia sapatos de camurça, de verniz, de couro, de plástico, de tecido, de jeans, de palha, de plástico, de pedrinhas, uma festa até mesmo para alguma mulher cega que se aventurasse por ali.

Não sei bem porque, mas aquela diversidade toda de sapatos me deixou confusa. Em meio ao fascínio que a loja exerce até mesmo nas mulheres menos ‘sapatófilas’ e, dado que Patrícia havia dito que eram tão baratos, pensei em comprar um par para agradá-la. Mas, de repente, não conseguia mais distinguir entre eles. Pareciam-me ora todos muito bonitos e ora todos horrorosos. Tentava me lembrar das peças de roupa que tenho no meu guarda roupas, para ver se algo combinaria com alguma peça atualmente sem par, mas minha mente não conseguia resgatar nenhuma imagem do passado. Tentei lembrar-me dos sapatos que tinha em casa e nem mesmo um consegui recordar. Estavam obliterados da minha memória, agora totalmente tomada pelas centenas e milhares de pares ativos na minha frente.

Logo apareceu Patrícia com sua sacola verde já repleta de pares, “Menina, você não vai imaginar o que eu encontrei. Olha só esse sapato de lezar roxo com strass no salto, só cento e cinqüenta reais! E essa botinha azul petróleo - um luxo, só duzentos e oitenta reais. No Shopping você pagaria no mínimo seiscentos reais! Essa sandalha prateada eu quase passei mal, veja que sexy! E esse chinelinho está na promoção, achei uma graça para ir para a praia, só cinqüenta!” De repente, ela se deu conta, horrorizada, de que minha sacola verde ainda estava vazia. “Que sem graça essa sacola! Você não esta encontrando as coisas? Quer ajuda?” Eu respondi que estava só mesmo olhando, pois afinal não precisava de sapato algum. Ela me olhou como se houvesse diagnosticado uma espécie rara de lepra e disse, “Sônia, você não está entendendo, isso aqui não acontece todo dia. Esta liquidação é só quatro vezes por ano! Você tem que aproveitar!”

O conceito de aproveitar de Patrícia me era estranho. Aproveitar exatamente o que? Aproveitar para comprar sapatos que eu não precisava? Sem querer assustá-la disse-lhe, “Mas Patrícia, não estou precisando de sapatos.” Sua resposta estava na ponta da língua, “Minha filha, quem é que precisa de sapatos? Só um pobre! Se fosse por precisar, não haveria ninguém aqui nesta loja. Ninguém compra sapatos só porque precisa.” Sem querer entrar no mérito da questão, disse lhe somente, “Eu já tenho os sapatos que preciso, Patrícia. De verdade. Só se encontrasse algo muito especial.” Senti o ar de desapontamento mais absoluto no seu olhar. Um pouco desconcertada ela disse-me que iria olhar as bolsas enquanto eu terminava de olhar os sapatos e saiu ainda mais agitada.

Fiquei ali no 35 observando o comportamento de todas aquelas mulheres. Pegavam diversos pares ao mesmo tempo e iam experimentando-os até mesmo em pé, dada a lotação dos bancos. A maioria trabalhava em duplas e sempre perguntavam umas para as outras se estava bom, “Olha Rê, não é lindo?”, “Olha Ká, não é chiquéssimo?”, “Marcinha, imagina esse sapato com uma saia preta!” Entendi que aquela atividade era mais divertida quanto praticada em duplas e pensei que Patrícia ficaria triste se eu não comprasse nada. Voltei meu olhar para as prateleiras até que encontrei um sapato que considerei simpático, com um trançado em roxo e amarelo diferente, salto nem alto nem baixo, um preço razoável, coloquei-o na sacola verde sem mesmo experimentar.

Direcionei-me até o setor de bolsas aonde vi Patrícia disputando acirradamente numa baia de bolsas vermelhas em promoção – Bota Fora de Bolsas Vermelhas - dizia o cartaz. A sacola verde cheia de sapatos atrapalhava-a de chegar até a beira da baia de exposição, mas ela conseguia puxar um e outro modelo estendendo os braços por entre as outras competidoras. Terminou por selecionar duas bolas vermelhas, uma para ela e outra para a irmã que faria aniversário na semana seguinte. Colocou as bolsas dentro da sacola e finalmente me viu à sua espera.
“Achou alguma coisa?” Eu respondi que sim, que havia gostado de um sapato. “Deixa eu ver.” Meu sapato não a impressionou. Ela me mirou com seus olhos bem delineados e disse, “Só esse Sô, mas é tão simplezinho. Aqui tem tanta coisa bonita, não acredito que você só vai levar isso. Não têm presentes para dar? Ninguém vai fazer aniversário? O Natal está logo aí, hein!” Eu disse-lhe que por hoje seria só esse. Ela balançou os ombros como se rendesse o último fio de esperança em relação a mim.

Direcionamo-nos até a fila que fazia várias voltas, num sistema já perfeitamente desenvolvido para comportar o fluxo de clientes ávidas por garantir suas compras. Nas paredes as formas de pagamento eram devidamente anunciadas e também as restrições em relação a trocas. Muitas mulheres aproveitavam a espera para espionar as sacolas das outras e certificar-se de que não havia lhes passado despercebida nenhuma grande oferta. Qualquer coisa ainda haveria tempo. Secretamente, regorjizavam de seus talentos quando miravam as compras menos apetitosas que as outras fizeram.

Chegando a nossa vez, Patrícia pagou em seis vezes sem juros o valor de mil e trezentos reais. Meu sapato custou sessenta e oito reais, que paguei em dinheiro vivo. Patrícia abraçou suas sacolas com prazer e eu disse ao moço do balcão que não precisaria da sacola, pois colocaria meu sapato dentro da minha bolsa. Ambos me olharam surpresos.

Na saída, havia montada uma verdadeira infra-estrutura para levar as clientes de volta para seus carros. Como o estacionamento ao lado da loja já estava saturado, havia agora um micro-ônibus que nos levaria até o estacionamento J situado dois quarteirões acima. Ficamos na fila do micro-ônibus que nos levaria até estacionamento por uns dez minutos. Nesta hora, passado o pico da excitação com as compras, Patrícia e eu conversamos um pouco.

Perguntei-lhe como iam as coisas e ela me disse que ia tudo bem, tudo ótimo, estava sempre muito animada. Perguntei se ela continuava fazendo programas noturnos com executivos estrangeiros. Ela disse que sim, pois as despesas de casa eram muitas e não conseguiria cobri-las com seu salário de dois mil e quinhentos reais, principalmente porque seu irmão, segundo ela, era um vagabundo que só estudava. “Alguém tem que trabalhar, não é?” Meus olhos descansaram sobre seus ombros queimados de sol e as sacolas repletas de sapatos enquanto fiz algumas contas na cabeça. Seus olhos buscaram resposta nos meus e, desta vez, quem mirou como quem via uma assombração fui eu.

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Back to Life

Desculpem-me pela longa ausência, mas entre travancos e barrancos, sustos e lamentos, viagens e dedicação quase exclusiva ao conto Ressurgência Icamiaba estive ausente do blog.
.
A boa notícia é que o meu primeríssimo conto está pronto, quem quiser lê-lo deixe um post aqui (com endereço) que eu envio. Saudações Icamiabas!

quinta-feira, 4 de outubro de 2007

Cenas Caipiras

Viajando pela região de Itapeva, interior do Estado de São Paulo, me deparei com este populoso e curioso quadrinho. Reconhei o estilo de pintura e moldura comum do Nordeste, mas percebi uma diferença. Enquanto por lá o quadrinho é composto somente com a imagem do casal, aqui neste sertão paulistano, inclui-se toda a família:

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

Mulheres das Florestas


Presto homenagem às mulheres guerreiras sindicalistas seringueiras que participaram do II Encontro dos Povos das Florestas ocorrido em Brasília - http://www.povosdasflorestas.org.br/ - são um íncone de luta, realismo e coragem.
.
.
.
.
"Caminhamos para o futuro nos rastros de nossos antepassados"
&
"Este tipo de dinheiro, ele empobrece as pessoas"
.
Marcos Terena

quinta-feira, 6 de setembro de 2007

Lucidez de Clarice

"A angústia é a vertigem da liberdade."

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

Ressurgência Tupinikim e Guarani

Salve a vitória dos povos Tupinikim e Guarani no Espírito Santo!
.
Que a reconstrução de suas aldeias seja bem sucedida e instale no Brasil uma nova era de retratação para com nossos povos nativos que perderam suas terras durante a ditadura militar e outros processos de colonização ignorantes e autoritários.
.
Agosto 2007

segunda-feira, 27 de agosto de 2007

Cenas Ribeirinhas

Num Quarteirão Qualquer

(Crônica vencedora do Segundo Concurso Literário Ben Gurion, 2007)

Quando lhes contar da incrível descoberta que fiz no meu quarteirão, estou certa que terão curiosidade de saber onde fica. Mas lhes digo desde já que o segredo não é o local em si, mas sim o olhar que minha rotina me convidou a jogar sobre ele – e sobre mim.

Sobre a rotina lhes digo já - tenho três cachorros vira-latas que apareceram na minha porta um belo dia e não pude rejeitar. Eram tão pequenos e fofos. Alguém inconseqüente, que devia saber da minha boa índole, colocou-os ali sabendo que eu os adotaria. Isso faz seis meses. Desde então, minha regrada rotina incorporou três passeios diários com eles. Acordo todos os dias às 7 horas. Antes de tomar meu café da manhã, faço o passeio matinal com eles e depois sigo para a Corregedoria. O outro passeio é ao meio-dia, antes do meu almoço. O outro é entre a correção das provas do cursinho e ir dormir, por volta das 9 horas da noite.

Quando os passeios começaram já não achei tão ruim. Apesar de atribular bastante meu esquema antigo, acabei fazendo ‘amizades de cachorro’. Trata-se de pessoas que têm um, dois ou até três cachorros, como eu, e compartilham na rua as histórias de seus filhotes e dicas sobre como criar-los melhor. Achei isso bom. O único problema é que quando os vejo sem seus cachorros não os reconheço, o que às vezes gera certo mal-estar. Os cachorros também se entrosaram bem no bairro, já tem até namoradas, apesar de serem um tanto quanto infiéis. Sendo assim, após poucos meses, reformulei minha opinião sobre a pessoa que deixou os filhotes na porta de minha casa.

Só que a coisa não parou aí. A rotina dos passeios me reservava ainda outras muitas descobertas. Os cachorros gostam de variar de roteiro ou ir por um caminho mais longo, mas sempre que não consigo vencer a tentação de ser um pouco egoísta levo-os para o meu quarteirão preferido. Ele tornou-se isso desde que passei a observar uma loja aonde coisas muito curiosas acontecem.

A loja sempre me intrigou. Recordo-me que mesmo antes dos cachorros, logo quando me mudei, visitei-a com a intenção de colocar moldura num quadro. Era um quadro do tamanho de um prato, mostrei-o para o balconista que sem mal olhar o quadro disse-me que custaria R$360 emoldurar-lo. Virei as costas e fui embora pensando jamais retornar numa loja com preços tão absurdos. O consumidor explorado tem o dever de esboçar reação e minar o empreendimento explorador.

Como passeava sempre com os cachorros na frente da loja acabei observando que além de molduras eles ofereciam diversos outros serviços ali: eletricista, encanador, chaveiro, carpinteiro etc. Cada vez que algo quebrava em casa me vinha a tentação de ligar para lá, mas resistia aos ladrões. Num domingo em que só ela estava aberta (parece que nunca fecha), acabei ligando. Veio em casa um senhor bastante rude que realizou com perfeição o trabalho de furar as paredes. Cobrou um preço normal. Não tive do que reclamar.

Intrigava-me ainda que, apesar de a loja oferecer tantos serviços úteis, nunca havia clientes ali, somente muitos homens parecidos com o que veio fazer o serviço em casa. Culpei o setor de molduras, principalmente, mas achei suspeito que tantos homens tirassem seu sustento de um empreendimento tão parado. Logo me veio em mente que a loja talvez servisse de fachada para alguma atividade mais rentosa do que molduras com preços astronômicos. Redobrei meu comprometimento em jamais usar seus serviços novamente. Sou uma pessoa seríssima e não compactuo com falcatruas.

Certo dia, durante o passeio matinal, tive uma enorme surpresa. A calçada na frente da loja encontrava-se coberta de enormes e belíssimos espelhos emoldurados. Criou-se um efeito incrível na rua, porque postos frente ao suave sol das manhãs paulistanas, que tecem seus raios nas brechas entre os prédios, os espelhos refletiam e multiplicavam imagens todas rendadas de luz. Adorei ver a mim e os cachorros refletidos em nosso conjunto e até eles balançaram seus rabos e começaram a cheirar os espelhos. Olhavam fascinados, assim meio sem entender como que de repente havia tantos deles ali!

Para o surgimento dos espelhos, imaginei que a coisa devia estar ‘pegando’ e eles tiveram que colocar algo ali que chamasse atenção para dar a impressão de que ali é uma loja de verdade.
Voltei para casa, mas não consegui para de pensar nos belos espelhos e em como seria bom ter um deles em casa. No momento, eu tinha somente um espelho parcial no qual era possível ver-me ou da cintura para cima ou da cintura para baixo. Rodei, rodei, pensei bem e resolvi dar-lhes uma nova chance.

No passeio do almoço, como quem não quer nada, perguntei a um deles quanto era o espelho de moldura branca. Com o tom aéreo de sempre o homem me respondeu que era R$480. Achei caríssimo, odiei-os, virei as costas e fui embora. Fiquei em casa ruminando por horas, pois de fato agora eu queria o tal espelho. Malditos ‘laranjas’ talvez não quisessem nem mesmo vender-los, se o propósito era ter os espelhos ali para dar impressão de ser uma loja de verdade. Fiquei pensando numa forma de realizar o meu desejo.

No passeio da noite, havia outro grupo de homens na loja. Armei-me de estratégia e perguntei quanto era o espelho branco. Meio desligado, o homem disse-me que era R$350. Sentindo que ganhara espaço, eu disse-lhe que estava caro, mas que levaria se ele me fizesse por R$250. Ele coçou a cabeça e disse que precisaria falar com o gerente. Gerente - pensei comigo - que fantasia mais ousada! Daqui a pouco desce o tal gerente usando até uma gravata. Perguntei a ele quanto me faria o espelho. Ele perguntou-me quanto eu daria por ele. Enfiei a espada e disse R$200. O gerente lembrou que o rapaz havia dito que eu daria R$250. Sem dar-lhe tempo de pensar, propus o meio termo e fechamos em R$225. Touché!

O gerente ainda brincou que eu havia feito um ótimo negócio antes de finalmente olhar atrás do espelho aonde havia uma etiqueta indicando que o real valor do espelho era R$440. Inacreditável, pensei. Minhas suspeitas foram todas confirmadas neste momento, afinal nenhum negócio de verdade poderia ser tão mal gerenciado. Entreguei-lhe o dinheiro. Sem pena, consegui ainda que um homem bem grandão levasse o espelho até em casa. Pão-pão, queijo-queijo, pensei comigo.

Desde minha suprema negociata do espelho, parece que ficamos todos mais próximos. Nos dias em que sigo meu trajeto favorito passamos na frente da loja e todos fazem festa - os cachorros gostam dos homens e eles brincam com os cachorros. Eu fico mais na minha, porque sei que ali rola um negócio que é ilícito e isso não condiz com a minha ética. Só percebi que pode ser útil conhecer gente de todo tipo na vida.

Outro dia, o grandão tomava sol num banco quando passamos e ele me perguntou se estava gostando do espelho. Meio sem querer acabei dizendo que sim – “agora consigo me ver por inteiro, não só as partes”. Arrependi-me de haver compartilhado tanta intimidade, puxei os cachorros e fui-me embora.

Porto de Santarém


domingo, 19 de agosto de 2007

Rumo a Santarem

Ultima semana de ferias - Icamiaba ruma para as belas praias do Rio Tapajos, para ler, dancar e ser feliz! Na volta, muito mais poesia e politica!!!

segunda-feira, 13 de agosto de 2007

Mendigos Urbanos

Fui assistir um fabuloso filme Boliviano – El Coraje del Pueblo – no Centro Cultural São Paulo e lá me deparei com múltiplos cheiros de mendigo. A Sala Lima Barreto ostentava este cheio, o que cada espectador certamente notava e muitos outros comentavam. Muitos frequentadoras do Centro, sentados nos bancos e cafés, ostentavam o mesmo cheiro em diversas variações mais ou menos ácidas. Seriam todos mendigos os que frequentam cinema gratuito nas tardes de São Paulo? Pensei. Seriam só os mendigos da cidade que mantém o gosto pela arte cinematográfica off-multiplex? Pensei. Seriam mendigos espirituais os governantes e funcionários públicos que deixam um espaço cultural de tal potentencial se deteriorar desta forma? Pensei. Ou seria que a população da cidade atingiu tal nível de pobreza que é mais viável assistir um filme sobre o massacre popular Bolíviano ocorrido em 1941 do que manter a sua própria higiene pessoal em dia? Pensei. Ainda estou pensando.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

São Paulo em Passeata



A sociedade paulistana clama por RESPEITO nas ruas - será a hora da virada?

Fazia MUITO FRIO nas nove horas do domingo paulistano quando começaram a chegar os primeiros manifestantes para a passeata que tinha como slogan principal: BASTA DE PASSIVIDADE, É HORA DE AGIR! Eu mesma tentei fugir de todas as formas do convite gélido, mas a insistência de um amigo me fez ir arrastando-me até o Monumento das Bandeiras para a passeata rumo à Congonhas em apoio às vítimas do acidente da TAM - era tudo o que eu sabia sobre o evento.

O primeiro grito que ouvi ecoava RESPEITO de algumas centenas de pessoas frente ao carro de som. Algumas bandeiras do PSDB na esquina e eu logo pensei tratar-se de um evento eleitoreiro. Era algo bem organizado, chamava atenção ver tantas pessoas bem vestidas, uma grande maioria de preto com muitos gorros e cachecóis para se aguentar o frio. Logo apareceram nas pessoas narizes vermelhos de palhaço (distribuídos pela organização do evento) como quem diz assim: não sou palhaço! Coloquei um nariz de palhaço e fui caminhando por entre a variedade de pessoas do entorno. Havia um grupo de judeus da Associação Amisrael, gente abraçada na bandeira do Brasil, grupos de familiares e amigos de mortos do acidente carregando fotos, gente com jeito de quem veio passear no parque com o cachorro, casais de idade, crianças, jovens de periferia - uma variedade de pessoas nesta atípica manhã paulistana.

Algumas questões rondava no ar: Há quanto tempo não se vê uma passeata de protesto na cidade? Quanto tempo não se vê uma passeata de protesto repleta de integrantes da classe média e classe média alta paulistana? Nem tenho tanto tempo de vida para saber a quanto tempo isso não ocorre!

Logo logo o desenho político (ou não-político) do evento foi se desenhando. Antes mesmo do arranque da passeata ouviu-se gritos no final da aglomeração: “FORA, FORA, FORA!” - corri até o local para ver os militantes do PSDB sendo escurraçados pelos manifestantes. A organização do evento logo anunciava “Este não é um evento político partidário e não admitiremos esse tipo de associação.” Os manifestantes vibraram, aplaudiam! E que manifestantes exigentes - bons paulistanos! Na demora em se iniciar a caminhada em meio ao frio de 7 graus centigrados os manifestantes também exigiam em voz alta: “ANDA! ANDA!” - é assim a passeata paulistana! Rumamos então a Congonhas!!

Muitas pessoas discursaram do alto do carro de som: líderes desconhecidos, familiares de vítimas, de famoso mesmo só o Seu Jorge, o cantor carioca, que não sei se perdeu alguém no vôo ou só se empolgou com a causa, só sei que contribui muito com seu linguajar claro e sua bela canção. A mensagem que emitia de todos era muito clara: demandava-se RESPEITO e demandava-se o BÁSICO. Interessante que o tema do acidente da TAM foi extrapolado logo no início do evento demonstrando que a preocupação do grupo era em relação a não só esta como a tantas OUTRAS MORTES ANUNCIADAS com as quais convivemos todos os dias, decorrentes de pobreza, assaltos, saúde pública précária etc.

Me deparei com um protestante que carregava um cartaz escrito a mão que dizia tudo: BASTA DE GANÂNCIA, CORRUPÇÃO, INCOMPETÊNCIA E IRRESPONSABILIDADE. Quando li estas palavras me surpreendi com a precisão de sua seleção e logo vi muitas pessoas se aproximando dele para elogiar-lo: “É exatamente isso!”, “Esta é a minha chapa”, “Parabéns pelo cartaz!” - todos concordavam co ele. É verdade que ouviu-se muitos “Fora Lula!”, muitos “Fora Marta”, mas ouviu-se também um apelo pela renúncia de Renan Calheiros e outros membros do legislativo brasileiro, de modo que eu interpretei que este foi um protesto de descontentamento generalizado com o Governo, não uma oposição partidária ao Partido dos Trabalhadores. Mais do que tudo era uma expressão de desespero.

Sobre desespero, notei que muitas pessoas ali buscavam alívio para isto que sentiam. Conversei com uma senhora de seus 60 anos que deixou o marido e os filhos em casa e veio para a passeata com um cartaz em mãos que dizia: “CHEGA! IMPUNIDADE E CORRUPÇÃO”. Disse-me ela que há anos que sente-se revoltada com a situação do país, que já parou de assitir TV, que mal dorme com medo quando seus filhos saem à noite e nunca fez nada mas que “HOJE RESOLVI FAZER ALGO!” Uma moça jovem e bonita, empresária de sucesso, carregava flores em punho e emocionada dizia “EU SOU O CHE GUEVARA, MAS NÃO HÁ NUNCA ESPAÇO PARA FAZER ALGO!” As tampas hoje estouraram!

Quando descíamos a Avenida 23 de Maio olhavamos para trás e que surpresa - haviam MILHARES DE PESSOAS nos seguindo! Ouvi falar em 6.000 pessoas participando e digo-lhes que com o frio que fazia na cidade essas 6.000 certamente valiam por no mínimo 30.000 - eu mesma conheço 5 pessoas que teríam ido se não fosse o fator climático!

Chegando na frente do local do acidente o grupo prestou suas homenagens aos mortos. Os repórteres faziam seu trabalho e eu vi os organizadores vibrando com o resultado do evento - em somente uma semana esse grupo relativamente icógnita, que aparentemente não buscava voto de ninguém (ou se buscava, não anotei seus nomes e nem sei para qual eleição!), conseguiu fazer acontecer. Acho que eles, como todos nós manifestantes, estavam um pouco MISTIFICADOS com as razões que levaram este evento à gerar tanta mobilização popular.

Seria este um evento isolado? Talvez sim e talvez não? Ao final ouvia-se várias pessoas falando em mantermos este grupo, em fazermos algo, em nos unirmos e buscarmos mudanças. Se hoje nasceu aqui em Sampa algo novo o tempo dirá. Na minha opinião isto ainda não acontecerá pois este grupo, assim como a MÍDIA brasileira, AINDA SE MOBILIZA EXCLUSIVAMENTE EM TORNO DA INDIGNAÇÃO com os fatos. Sem minimizar esta vitória intermediária de expressão da indignação, é preciso se reconhecer que infelizmente não há ainda mobilização em torno de um projeto novo de futuro para o Brasil. Como foi dito durante a passeata A LUTA AQUI É AINDA PELO BÁSICO, luta para não se morrer um dia qualquer num acidente banal. A passeata de hoje foi um grande pequeno passo - que o futuro se dê daqui para diante!

Julho 2007

São Paulo na Virada e Estética Periférica

Virei a noite passada, na Virada Cultural, que coisa bem Brasil!

Meta do grupo era começar com Alceu e ficar até o show do Racionais na alta madrugada, mas não sabíamos o que ia rolar entre um e outro. Show de Alceu foi massa, começou hora em ponto e nos divertiu como só um pernambucano o sabe, além do bacana que Alceu historicizou ter estado ali naquela mesma praça da Sé, quiçá baixo de uma lua tão bela quanto a de ontem, na época das Diretas já. Fiquei pensando se na cabeça dele ver os milhares de jovens curtindo a Virada Cultural vinte anos depois foi motivo de alegria – se foi para isso que ele e seus colegas de geração lutaram?

No chão da praça havia um mix total, os habituais integrantes da praça ou dormiam ou circulavam assombrando os visitantes como quem diz – o que fazem todos vocês na minha casa? E os visitantes eram uma galera jovem e do bem. Bebem um pouco demais, inclusive uma versão de chup-chup chamada pinga com mel, disponível em todas as cores do arco-anilina, que se me pagassem mil paus para beber eu não bebia. Deus do céu, que tipo de álcool pode estar contido ali, ainda mais com essa a febre do etanol por aí. Mas a galera competia pelos ambulantes da PCM (pinga com mel), mordia a pontinha do saquinho e levantava a outra ponta ao alto aos montes, numa espécie coreografia bizarra. Maconha rolava geral sem o menor constrangimento, lado a lado com um batalhão inteiro da polícia militar. Vai entender a lógica do negócio...

O fim do show de Alceu nos lançou órfãos na noite, que logo nos acolheu com generosidade. As sombrias ruas do centro estavam todas povoadas, cheias de agito, DJ’s tocando lounge music por todo canto, centros culturais abertos, monitores distribuindo mapas, etc. Pedimos direções a um hippie super bacana, cara descolado da zona sul, curtimos o maior papo e pedi para ele explicar melhor para minha amiga canadense o sentido de Racionais MC. Com empolgação total, o cara rapeou uns quinze minutos vários trechos de sons racionais, como só quem é fã de verdade sabe, palavra por palavra seguindo a entonação do Mano. Depois ainda politizou e explicou como Mano Brown, dito branco, era preconceituoso contra a burguesia e achava que tudo de ruim que acontecia era culpa da burguesia. Questionei-o: “E você concorda?” Ele teve resposta pronta, disse que acha que a culpa é do governo, não só da burguesia. Sobre Mano ser branco ele, que era negro puro, disse que é por ele ser “quase branco”. Mulato, eu sugeri, é negro também. Mas ele insistiu, “digo que Mano é quase branco, pois é rico e tal”.

Na nossa despedida deste irmão de rua ele falou da importância de se dar atenção aos outros seres humanos, pois todo mundo precisa de atenção. Eu disse-lhe que ele nos deu atenção e isso nos alegrou. Ele retribuiu e reiterou como sem esses gestos mútuos poderíamos ter ficado cada um no seu lado – nós brancas, eles negros, mas felizmente não foi assim! Comprei uma pulseira para ajudar-lo, mas logo adorei-a e já carrego-a como amuleto – salve este rapaz luz! E assim eram os corredores da virada, cheios de interações entre gente viva! Logo surgiu o majestoso e clássico Teatro Municipal, envolto em várias camadas de fila humana. Rodamos o prédio duas vezes em busca do fim da fila e acabamos nos encaixando em um fim hipotético. Energia total na fila – João Donato, João Bosco, outros Joãos tocariam ali. Quem não conhecia algum deles logo os outros da fila explicavam quem era, compartilhavam artigos de jornais e histórias próprias sobre os tais. Entramos para ver o João das 9 e acabamos curtindo a fila por três horas para ver o João das 0 horas, mas sabe o que? A fila foi demais! Ali conheci Taís, moça linda, estudante da PUC de psicologia que trabalhou no Skol Beats na noite anterior e veio para a cidade conhecer o Municipal. Também Luciana, doutoranda da USP, essa sim sabia tudo de João Bosco e também de religiões afro-descendentes! Cruzei com um cara muito louco que havia conhecido numa festa na semana passada e falamos por horas sobre poder e vaidades, família e individualidade, burguesia e a verdade, coisas profundas! A fome bateu e logo fomos batalhar algo que não fosse a coxinha de gato do boteco da esquina, pois foram poucos os ambulantes espertos como o pamonheiro Luizão que nos vendeu um milho de primeira.

Mais engraçado foi ver a reação de nossa amiga canadense ao ver o inchaço gradual da fila. Já na concentração da entrada a ‘chapa esquentou’ e testemunhamos todas as estratégias possíveis de fura-filas, a complacência dos fileiros (nós inclusive) e eventualmente um esboço de resistência bem humorada, quando formarmos um coro “al, al, al, quem furar fila vai se dar mal” até que um senhor originário do fim da fila resolveu tomar uma atitude e botar ordem da fila. Circulou a fila com cara de bravo e dois seguranças, um dos quais se encantou com nossa bela amiga Taís e cedeu-lhe um ingresso às escondidas. Para Catherine, só pudemos dizer “Isso é Brasil – por um lado é tão humanizado, não brigamos e solidarizamo-nos com os amigos fura-filas, mas é certo que há sempre alguém lá no fim da fila que sai perdendo...” Logo chegou a nossa vez de entrar e na emoção de entrarmos ou sermos os primeiros a sermos barrados (suspense!) a sorte nos abraçou e em breve estávamos dentro do belo teatro. Do balcão do banheiro tivemos a vista magnífica da cidade e do povo lá em baixo, aproveitamos para distribuir beijos, já nos sentindo parte integrante da realeza!

João Bosco foi quem tocou para nós e que talento musical pleno ressoou deste homem! Que sorte tivemos de poder compartilhar de sua simplicidade e da intimidade que se criou entre ele e todos as camadas do imenso teatro, dando a sensação de estarmos um tipo de barzinho intimista como tantos em que já fomos escutar MPB. E como não ter a sensação de que este era o João-matriz - inspiração de tantos outros milhares de Joãos cantores de bar e violão pelo Brasil a fora. Saímos de alma lavada e mortas de fome. Sentamos no barzinho do teatro e curtimos um sanduíche natural com café com leite e pão de mel que foi perfeito como só as refeições mais famintas podem ser. Ali encontramos o Serjão do trabalho e tentamos recrutar-lo para integrar a turma que iria até o show do Racionais.

O caminho do Teatro até a Praça da Sé foi literalmente uma aventura surreal. As ruas encontravam-se abarrotadas de gente já com ar de madrugada, a periferia já se fazendo presente, o pessoal já ‘alto’ e as ruelas com DJ’s loungianos do início da noite já haviam maturado em raves alucinantes com luzes estrabólicas, pessoas vestidas style hip-hop, a agressividade já extravazando em pequenos empurra-empurras, homens mijando nos becos e até um com o pinto duro exposto, além de figuras inusitadas com perfurações semi-indígenas por todo o rosto, orelhas deformadas até com lata de Red bull servindo de brinco! Foi um preâmbulo à chegada na Sé, que aguardava o show do Racionais ainda na mais suspeita paz.

A Sé, naquela altura, já era 100% nação hip-hop e desfilavam por ali os manos e minas em suas variantes – com gorros ou bonés, às vezes bonés e capuz por cima, tendência tribal ou diamante, a exuberância afro de casais totemísticos ou mesmo os manos de moletom com suas minas gorduchas, havia de tudo. O orgulho de ser periferia, de ser “preto e fodido”, essa brilhante inversão de valores e afirmatividade que os Racionais conseguiram inaugurar na sociedade brasileira estava expresso na estética de cada uma ali prestando homenagem a o Mano Mor Brown, profeta desta geração. Subiam nas árvores, nos banheiros químicos, nas bancas de jornal, nas palmeiras da Sé, nos prédios esculpidos do entorno, ocupavam cada ponto da praça para ver o profeta.

Também havia ali moças de família, de classe média, brancas e muitas loiras, talvez para flertar com toda essa sensualidade ascendente? Eram moças tão bonitas e jovens, fumando e bebendo tanto, soltas às 4 da manhã na rua, fiquei especulando qual seria o seu destino? No que participar desta noite contribuiria ou não para suas trajetórias de vida? Formariam-se na universidade, casariam-se, teriam filhos como suas mães? Ou morreriam antes disso? Ou depois? Quantas delas? Muda alguma coisa para elas estar ali? Especulações...

Mas fica claro que esse não é só um movimento fashion - é um movimento real. Lembrete constante disso é que na mescla desse povo há sempre aqueles com olhos estatelados, andar sem rumo, a galera da droga pesada - são os perdidos da sociedade falida a quem Mano também acolhe. “Aqui estamos todos entre nós, não vamos nos estranhar, certo?”, anunciava no início do show. Mas como não se estranhar? Em meio à estética periférica há a realidade periférica, as garrafas de vodca nas mochilas, e desafio à pobreza extrema, a busca compulsiva pela oblividão, os enormes cigarros de maconha acesos com pompa desafiadora, os que aos poucos caem ao chão chapados, a moça de rosto belíssimo sentada no meio fio com olhar perdido, os que cobrem suas cabeças pois a ‘viagem’ tomou conta deles, outros que vomitam ali mesmo....quem sabe se chegarão em casa esta noite?

O universo Racionais fez poesia da vida dura, deu orgulho aos ‘fodidos’ mas fodidos eles ainda estão, em sua maioria – a vida é ‘loka’, como se lê nas motos da cidade, mas a vida é também dura e a política ainda se faz em construção. A energia estupenda que se gera num evento destes próvem desse conflito, mas é traiçoeira e pode a qualquer minuto se voltar para o mal. E foi isso mesmo que aconteceu, não? Hoje, Domingo, me ligou Serjão, que do Municipal acabou não indo conosco para a Sé, querendo saber se eu estava bem. Viu na internet o que o show dos Racionais acabou em guerra, com carros incendiados, balas de borracha, conflito com policiais, roubo de munições. Felizmente, algumas de nós, já cansadas, fomos embora antes da ocorrida ebulição.

Liguei para Taís, que havia ficado até o fim, que me disse que tudo começou quando alguns policiais subiram numa banca de jornais e desceram o cacetete em um pessoal que assistia o show em cima delas. Os outros protestaram, acuaram os policiais contra a banca e começaram a jogar coisas e xingar-los de FDP. Isso foi o que precipitou a intervenção do batalhão com bobas de gás pimenta e tal. Conflito entre o Estado e os excluídos do sistema, tão narrado por Mano Brown, se repetiu mais uma vez.

Nesta hora, eu e Catherine já havíamos conseguimos um táxi para voltar para casa. Cruzando a 23 de Março vimos dois corpos deitados ao chão no canteiro, cobertos com tecido de alumínio, a viatura policial iluminando a noite – acidente.

Vivi São Paulo e cheguei em casa viva da Virada! Pronta para a próxima - claro. E há como resistir ser aquilo que somos?

2007

terça-feira, 17 de julho de 2007

Culpa no Cartório

Não pude deixar de surpreender-me com o visual agradável deste primeiro dos ‘cartórios de crime’ que visitei assim que entrei no recinto. A vida toda ouvi dizer que são nestes cartórios corruptíveis que ocorre a grilagem das terras da Amazônia. Era uma sala ampla, com ar condicionado introduzindo frescor aos recém-chegados do calor das ruas, todas as atendentes mulheres singelamente bem vestidas, vários quadros a óleo nas paredes, quadros grandes com imagens da floresta, de animais, de índios. Certamente, não imaginava isso.

Nosso grupo aguardou na entrada até que uma moça apareceu para nos levar até a sala de Dona Cleusa, a dona do cartório. Na hora que a bati o olho em sua saia verde musgo rendada e seus tamancos dourados lembrei-me de ter-la já visto no dia anterior, no aeroporto. A blusa azul piscina descombinava da saia em estilo e tom, os seios caídos não encontravam apoio algum e os cabelos brancos crespos rentes ao couro cabeludo já saltavam do trecho liso e aloirado mais adiante. Não era uma figura de impressionar.

Acomodamo-nos na pequena sala sem janelas e tratamos de explicar quem éramos, o que fazíamos, dando exemplos simples para que aquela mulher pudesse entender. Falamos de frigorífico, de exportação, falamos demais e de tantas coisas que pensei termos confundido-a quando ela se colocou, firme e delicadamente, como sendo fazendeira pecuarista e, recitando palavras estratégicas que ela sabia que precisávamos ouvir, mostrou estar muito bem por dentro dos temas que pretendíamos com ela tratar. Foi uma estratégia efetiva, pois se calaram as explicações e partimos para as perguntas. Mulher auspiciosa, pensei comigo.

Muito em breve, no entanto, ela arraigou posicionamento político provinciano e conservador. Disse-nos que todos os pecuaristas da região tinham suas reservas legais averbadas, passando-lhe a mão na cabeça. Enquanto falava eu me lembrava das imagens de satélite que havia estudado que indicavam claramente o inverso e achei que neste item era ela quem nos subestimava. Tive a sensação de confirmação de que aquele cartório seria mesmo um ‘cartório do crime’, pois ali presidia alguém que dizia todos os fazendeiros serem santos.

Como todo reacionário a tal senhora tinha sempre uma desculpa e um viço. Falava repetidamente sobre a mo-ro-si-da-de dos órgãos governamentais. A culpa era sempre deles. Os fazendeiros, coitados, eram cidadão de boa fé, sempre tentando fazer a coisa certa e a mo-ro-si-da-de dos órgãos governamentais sempre os impedindo de levar uma vida tranqüila. Em certo ponto ela até elaborou uma teoria de que o maior grileiro do Pará é a União, pois grilou a terra do Estado em certa época, obtendo para si domínio de grande parte do território. No auge desta primeira parte da conversa ela chegou até a declarar, “Na verdade, não houve grilagem de terras no Pará”!

A esta altura eu já havia formado opinião sobre ela, da forma como fazemos quando ouvimos alguém falar coisas muito absurdas com as quais não podemos concordar. Parei de confiar no interlocutor. Daí é que surgiu esse conto, porque ela se tornou um personagem. Já que não podia confiar na informação da entrevistada, desliguei o foco de pesquisa e sintonizei na poesia. Nesta hora, seu depoimento mudou - ou seria o meu olhar?

Disse-nos então que se não houve mesmo grilagem o que houve foi um grupo, e logo corrigiu sua semântica - aliás, um bando - que começou a falsificar títulos do INCRA no final dos anos oitenta. O bando ia ao cartório de seu pai e registrava títulos falsificados como se tivessem sido emitidos pelo INCRA. Isso foi descoberto ao acaso quando um funcionário do cartório viu que um dos títulos continha o valor da propriedade em Cruzados quando a moeda já havia mudado para Cruzados Novos. Dona Cleusa teorizou que os bandidos sempre se perdem nos detalhes. Pois foi assim que seu pai descobriu o esquema fraudulento - foi ao INCRA esclarecer o erro no documento e lá descobriu que o título era forjado e não emitido por este órgão.

Homem hábil, logo identificou que já havia quarenta outros títulos falsos registrados pelo mesmo bando em seu cartório. Homem corajoso notificou a Polícia Federal e cooperou para armarem uma cilada para o bando, que eventualmente foi preso dentro do seu cartório, quando tentava avançar no golpe. Enquanto ela contava o ocorrido eu pensava na sorte que seu pai tivera de agir desta forma e permanecer vivo. Num inesperado contratempo de narrativa ela revelou o desfecho da história, “Dois anos depois, meu pai foi seqüestrado. Foi morto pelos bandidos. Seu corpo foi encontrado na beira de um rio uma semana depois.” Histórias que fazem arrepiar, dos heróis brasileiros que nunca ninguém conhecerá.

A filha tinhosa, logo após a morte do pai, ainda fez questão de bloquear todos os tais títulos falsos através de procedimento administrativo cartorial, para evitar que os grileiros repassassem o crime vendendo terras griladas para desavisados. Fez isso por crer que os órgãos responsáveis seriam morosos em tomar esta atitude. Dito e feito, o caso se arrastou por anos a fio até que um Procurador do Nordeste se dispôs a vir enfrentar a situação em que ninguém da região queria se arriscar. Numa audiência ela ainda ouviu das autoridades que havia procedido de forma irregular ao bloquear os títulos falsos independentemente. Seu desprezo pelos órgãos públicos cresceu ainda mais.

Foi logo depois de tudo isso, em 2002, que um Ministro culpou os cartórios da Amazônia pelos crimes de grilagem, disse-nos Dona Cleusa. Os noticiários de todo o Brasil anunciavam que eles eram a “Casa da Moeda do Crime”, ela recordou as manchetes. Reconheci a história, pois foi esta mesma que havia formado também a minha opinião sobre os cartórios da Amazônia até a porta de entrada deste cartório.

O papo seguiu e o grupo falou ainda de propina, de procedimentos cartoriais, da morosidade dos órgãos públicos etc. Eu observava a foto do pai dela na parede, uma destas fotos antigas que se assemelham a uma pintura de uma foto, típicas da região Nordeste, com moldura redonda. Notava a forma como ela tecia seu discurso com menções carinhosas aos aprendizados que obteve com o pai. A toda hora dizia, “Papai sempre disse para fazer assim”, “Papai sempre disse para não esquecer isso” – falava como uma menina nessas horas e eu a imaginava adolescente, já esperta e ainda esbelta, aprendendo os truques do negócio com o pai.

Dona Cleusa foi crescendo em mim. Sua saia verde musgo descombinada da blusa azul piscina foram desaparecendo na medida em que aparecia para mim a pessoa forte e bela que ela foi e é na vida. Agradeci a Deus por mais essa benção, por mais esta oportunidade de ver a vida por vários ângulos e me considerei uma pessoa de grande sorte por ter o olhar para a vida e a oportunidade de ver e viver o Brasil.

2007

Sair das Trevas

Bem, é difícil, mas o blog tem mesmo que começar! Uma das coisas mais prazerosas do último ano foi começar a compartilhar aquilo que eu escrevo com os amigos e agora vou tentar expandir um pouco mais esta rede. Vou colocando alguns contos e poemas no blog, sem ordem cronológica específica...na ordem do que der na telha!

terça-feira, 3 de julho de 2007

Convite Icamiaba

Já pararam para pensar para onde foram as Icamiabas se, como dizem os caboclos, não foram mortas pelos colonizadores? Jamais derrotadas seriam guerreiras de tão grande coragem. Vivem até hoje no fundo do Rio Tocantins e pelo mundo a fora. Uma nação original, uma etnia nova composta de sangue indígena, branco e cetáceo, uma utopia imersa em coral.