terça-feira, 17 de julho de 2007

Culpa no Cartório

Não pude deixar de surpreender-me com o visual agradável deste primeiro dos ‘cartórios de crime’ que visitei assim que entrei no recinto. A vida toda ouvi dizer que são nestes cartórios corruptíveis que ocorre a grilagem das terras da Amazônia. Era uma sala ampla, com ar condicionado introduzindo frescor aos recém-chegados do calor das ruas, todas as atendentes mulheres singelamente bem vestidas, vários quadros a óleo nas paredes, quadros grandes com imagens da floresta, de animais, de índios. Certamente, não imaginava isso.

Nosso grupo aguardou na entrada até que uma moça apareceu para nos levar até a sala de Dona Cleusa, a dona do cartório. Na hora que a bati o olho em sua saia verde musgo rendada e seus tamancos dourados lembrei-me de ter-la já visto no dia anterior, no aeroporto. A blusa azul piscina descombinava da saia em estilo e tom, os seios caídos não encontravam apoio algum e os cabelos brancos crespos rentes ao couro cabeludo já saltavam do trecho liso e aloirado mais adiante. Não era uma figura de impressionar.

Acomodamo-nos na pequena sala sem janelas e tratamos de explicar quem éramos, o que fazíamos, dando exemplos simples para que aquela mulher pudesse entender. Falamos de frigorífico, de exportação, falamos demais e de tantas coisas que pensei termos confundido-a quando ela se colocou, firme e delicadamente, como sendo fazendeira pecuarista e, recitando palavras estratégicas que ela sabia que precisávamos ouvir, mostrou estar muito bem por dentro dos temas que pretendíamos com ela tratar. Foi uma estratégia efetiva, pois se calaram as explicações e partimos para as perguntas. Mulher auspiciosa, pensei comigo.

Muito em breve, no entanto, ela arraigou posicionamento político provinciano e conservador. Disse-nos que todos os pecuaristas da região tinham suas reservas legais averbadas, passando-lhe a mão na cabeça. Enquanto falava eu me lembrava das imagens de satélite que havia estudado que indicavam claramente o inverso e achei que neste item era ela quem nos subestimava. Tive a sensação de confirmação de que aquele cartório seria mesmo um ‘cartório do crime’, pois ali presidia alguém que dizia todos os fazendeiros serem santos.

Como todo reacionário a tal senhora tinha sempre uma desculpa e um viço. Falava repetidamente sobre a mo-ro-si-da-de dos órgãos governamentais. A culpa era sempre deles. Os fazendeiros, coitados, eram cidadão de boa fé, sempre tentando fazer a coisa certa e a mo-ro-si-da-de dos órgãos governamentais sempre os impedindo de levar uma vida tranqüila. Em certo ponto ela até elaborou uma teoria de que o maior grileiro do Pará é a União, pois grilou a terra do Estado em certa época, obtendo para si domínio de grande parte do território. No auge desta primeira parte da conversa ela chegou até a declarar, “Na verdade, não houve grilagem de terras no Pará”!

A esta altura eu já havia formado opinião sobre ela, da forma como fazemos quando ouvimos alguém falar coisas muito absurdas com as quais não podemos concordar. Parei de confiar no interlocutor. Daí é que surgiu esse conto, porque ela se tornou um personagem. Já que não podia confiar na informação da entrevistada, desliguei o foco de pesquisa e sintonizei na poesia. Nesta hora, seu depoimento mudou - ou seria o meu olhar?

Disse-nos então que se não houve mesmo grilagem o que houve foi um grupo, e logo corrigiu sua semântica - aliás, um bando - que começou a falsificar títulos do INCRA no final dos anos oitenta. O bando ia ao cartório de seu pai e registrava títulos falsificados como se tivessem sido emitidos pelo INCRA. Isso foi descoberto ao acaso quando um funcionário do cartório viu que um dos títulos continha o valor da propriedade em Cruzados quando a moeda já havia mudado para Cruzados Novos. Dona Cleusa teorizou que os bandidos sempre se perdem nos detalhes. Pois foi assim que seu pai descobriu o esquema fraudulento - foi ao INCRA esclarecer o erro no documento e lá descobriu que o título era forjado e não emitido por este órgão.

Homem hábil, logo identificou que já havia quarenta outros títulos falsos registrados pelo mesmo bando em seu cartório. Homem corajoso notificou a Polícia Federal e cooperou para armarem uma cilada para o bando, que eventualmente foi preso dentro do seu cartório, quando tentava avançar no golpe. Enquanto ela contava o ocorrido eu pensava na sorte que seu pai tivera de agir desta forma e permanecer vivo. Num inesperado contratempo de narrativa ela revelou o desfecho da história, “Dois anos depois, meu pai foi seqüestrado. Foi morto pelos bandidos. Seu corpo foi encontrado na beira de um rio uma semana depois.” Histórias que fazem arrepiar, dos heróis brasileiros que nunca ninguém conhecerá.

A filha tinhosa, logo após a morte do pai, ainda fez questão de bloquear todos os tais títulos falsos através de procedimento administrativo cartorial, para evitar que os grileiros repassassem o crime vendendo terras griladas para desavisados. Fez isso por crer que os órgãos responsáveis seriam morosos em tomar esta atitude. Dito e feito, o caso se arrastou por anos a fio até que um Procurador do Nordeste se dispôs a vir enfrentar a situação em que ninguém da região queria se arriscar. Numa audiência ela ainda ouviu das autoridades que havia procedido de forma irregular ao bloquear os títulos falsos independentemente. Seu desprezo pelos órgãos públicos cresceu ainda mais.

Foi logo depois de tudo isso, em 2002, que um Ministro culpou os cartórios da Amazônia pelos crimes de grilagem, disse-nos Dona Cleusa. Os noticiários de todo o Brasil anunciavam que eles eram a “Casa da Moeda do Crime”, ela recordou as manchetes. Reconheci a história, pois foi esta mesma que havia formado também a minha opinião sobre os cartórios da Amazônia até a porta de entrada deste cartório.

O papo seguiu e o grupo falou ainda de propina, de procedimentos cartoriais, da morosidade dos órgãos públicos etc. Eu observava a foto do pai dela na parede, uma destas fotos antigas que se assemelham a uma pintura de uma foto, típicas da região Nordeste, com moldura redonda. Notava a forma como ela tecia seu discurso com menções carinhosas aos aprendizados que obteve com o pai. A toda hora dizia, “Papai sempre disse para fazer assim”, “Papai sempre disse para não esquecer isso” – falava como uma menina nessas horas e eu a imaginava adolescente, já esperta e ainda esbelta, aprendendo os truques do negócio com o pai.

Dona Cleusa foi crescendo em mim. Sua saia verde musgo descombinada da blusa azul piscina foram desaparecendo na medida em que aparecia para mim a pessoa forte e bela que ela foi e é na vida. Agradeci a Deus por mais essa benção, por mais esta oportunidade de ver a vida por vários ângulos e me considerei uma pessoa de grande sorte por ter o olhar para a vida e a oportunidade de ver e viver o Brasil.

2007

Um comentário:

Anônimo disse...

Adorei seu conto! É baseado em fatos verídicos?? Luana.