Virei a noite passada, na Virada Cultural, que coisa bem Brasil!
Meta do grupo era começar com Alceu e ficar até o show do Racionais na alta madrugada, mas não sabíamos o que ia rolar entre um e outro. Show de Alceu foi massa, começou hora em ponto e nos divertiu como só um pernambucano o sabe, além do bacana que Alceu historicizou ter estado ali naquela mesma praça da Sé, quiçá baixo de uma lua tão bela quanto a de ontem, na época das Diretas já. Fiquei pensando se na cabeça dele ver os milhares de jovens curtindo a Virada Cultural vinte anos depois foi motivo de alegria – se foi para isso que ele e seus colegas de geração lutaram?
No chão da praça havia um mix total, os habituais integrantes da praça ou dormiam ou circulavam assombrando os visitantes como quem diz – o que fazem todos vocês na minha casa? E os visitantes eram uma galera jovem e do bem. Bebem um pouco demais, inclusive uma versão de chup-chup chamada pinga com mel, disponível em todas as cores do arco-anilina, que se me pagassem mil paus para beber eu não bebia. Deus do céu, que tipo de álcool pode estar contido ali, ainda mais com essa a febre do etanol por aí. Mas a galera competia pelos ambulantes da PCM (pinga com mel), mordia a pontinha do saquinho e levantava a outra ponta ao alto aos montes, numa espécie coreografia bizarra. Maconha rolava geral sem o menor constrangimento, lado a lado com um batalhão inteiro da polícia militar. Vai entender a lógica do negócio...
O fim do show de Alceu nos lançou órfãos na noite, que logo nos acolheu com generosidade. As sombrias ruas do centro estavam todas povoadas, cheias de agito, DJ’s tocando lounge music por todo canto, centros culturais abertos, monitores distribuindo mapas, etc. Pedimos direções a um hippie super bacana, cara descolado da zona sul, curtimos o maior papo e pedi para ele explicar melhor para minha amiga canadense o sentido de Racionais MC. Com empolgação total, o cara rapeou uns quinze minutos vários trechos de sons racionais, como só quem é fã de verdade sabe, palavra por palavra seguindo a entonação do Mano. Depois ainda politizou e explicou como Mano Brown, dito branco, era preconceituoso contra a burguesia e achava que tudo de ruim que acontecia era culpa da burguesia. Questionei-o: “E você concorda?” Ele teve resposta pronta, disse que acha que a culpa é do governo, não só da burguesia. Sobre Mano ser branco ele, que era negro puro, disse que é por ele ser “quase branco”. Mulato, eu sugeri, é negro também. Mas ele insistiu, “digo que Mano é quase branco, pois é rico e tal”.
Na nossa despedida deste irmão de rua ele falou da importância de se dar atenção aos outros seres humanos, pois todo mundo precisa de atenção. Eu disse-lhe que ele nos deu atenção e isso nos alegrou. Ele retribuiu e reiterou como sem esses gestos mútuos poderíamos ter ficado cada um no seu lado – nós brancas, eles negros, mas felizmente não foi assim! Comprei uma pulseira para ajudar-lo, mas logo adorei-a e já carrego-a como amuleto – salve este rapaz luz! E assim eram os corredores da virada, cheios de interações entre gente viva! Logo surgiu o majestoso e clássico Teatro Municipal, envolto em várias camadas de fila humana. Rodamos o prédio duas vezes em busca do fim da fila e acabamos nos encaixando em um fim hipotético. Energia total na fila – João Donato, João Bosco, outros Joãos tocariam ali. Quem não conhecia algum deles logo os outros da fila explicavam quem era, compartilhavam artigos de jornais e histórias próprias sobre os tais. Entramos para ver o João das 9 e acabamos curtindo a fila por três horas para ver o João das 0 horas, mas sabe o que? A fila foi demais! Ali conheci Taís, moça linda, estudante da PUC de psicologia que trabalhou no Skol Beats na noite anterior e veio para a cidade conhecer o Municipal. Também Luciana, doutoranda da USP, essa sim sabia tudo de João Bosco e também de religiões afro-descendentes! Cruzei com um cara muito louco que havia conhecido numa festa na semana passada e falamos por horas sobre poder e vaidades, família e individualidade, burguesia e a verdade, coisas profundas! A fome bateu e logo fomos batalhar algo que não fosse a coxinha de gato do boteco da esquina, pois foram poucos os ambulantes espertos como o pamonheiro Luizão que nos vendeu um milho de primeira.
Mais engraçado foi ver a reação de nossa amiga canadense ao ver o inchaço gradual da fila. Já na concentração da entrada a ‘chapa esquentou’ e testemunhamos todas as estratégias possíveis de fura-filas, a complacência dos fileiros (nós inclusive) e eventualmente um esboço de resistência bem humorada, quando formarmos um coro “al, al, al, quem furar fila vai se dar mal” até que um senhor originário do fim da fila resolveu tomar uma atitude e botar ordem da fila. Circulou a fila com cara de bravo e dois seguranças, um dos quais se encantou com nossa bela amiga Taís e cedeu-lhe um ingresso às escondidas. Para Catherine, só pudemos dizer “Isso é Brasil – por um lado é tão humanizado, não brigamos e solidarizamo-nos com os amigos fura-filas, mas é certo que há sempre alguém lá no fim da fila que sai perdendo...” Logo chegou a nossa vez de entrar e na emoção de entrarmos ou sermos os primeiros a sermos barrados (suspense!) a sorte nos abraçou e em breve estávamos dentro do belo teatro. Do balcão do banheiro tivemos a vista magnífica da cidade e do povo lá em baixo, aproveitamos para distribuir beijos, já nos sentindo parte integrante da realeza!
João Bosco foi quem tocou para nós e que talento musical pleno ressoou deste homem! Que sorte tivemos de poder compartilhar de sua simplicidade e da intimidade que se criou entre ele e todos as camadas do imenso teatro, dando a sensação de estarmos um tipo de barzinho intimista como tantos em que já fomos escutar MPB. E como não ter a sensação de que este era o João-matriz - inspiração de tantos outros milhares de Joãos cantores de bar e violão pelo Brasil a fora. Saímos de alma lavada e mortas de fome. Sentamos no barzinho do teatro e curtimos um sanduíche natural com café com leite e pão de mel que foi perfeito como só as refeições mais famintas podem ser. Ali encontramos o Serjão do trabalho e tentamos recrutar-lo para integrar a turma que iria até o show do Racionais.
O caminho do Teatro até a Praça da Sé foi literalmente uma aventura surreal. As ruas encontravam-se abarrotadas de gente já com ar de madrugada, a periferia já se fazendo presente, o pessoal já ‘alto’ e as ruelas com DJ’s loungianos do início da noite já haviam maturado em raves alucinantes com luzes estrabólicas, pessoas vestidas style hip-hop, a agressividade já extravazando em pequenos empurra-empurras, homens mijando nos becos e até um com o pinto duro exposto, além de figuras inusitadas com perfurações semi-indígenas por todo o rosto, orelhas deformadas até com lata de Red bull servindo de brinco! Foi um preâmbulo à chegada na Sé, que aguardava o show do Racionais ainda na mais suspeita paz.
A Sé, naquela altura, já era 100% nação hip-hop e desfilavam por ali os manos e minas em suas variantes – com gorros ou bonés, às vezes bonés e capuz por cima, tendência tribal ou diamante, a exuberância afro de casais totemísticos ou mesmo os manos de moletom com suas minas gorduchas, havia de tudo. O orgulho de ser periferia, de ser “preto e fodido”, essa brilhante inversão de valores e afirmatividade que os Racionais conseguiram inaugurar na sociedade brasileira estava expresso na estética de cada uma ali prestando homenagem a o Mano Mor Brown, profeta desta geração. Subiam nas árvores, nos banheiros químicos, nas bancas de jornal, nas palmeiras da Sé, nos prédios esculpidos do entorno, ocupavam cada ponto da praça para ver o profeta.
Também havia ali moças de família, de classe média, brancas e muitas loiras, talvez para flertar com toda essa sensualidade ascendente? Eram moças tão bonitas e jovens, fumando e bebendo tanto, soltas às 4 da manhã na rua, fiquei especulando qual seria o seu destino? No que participar desta noite contribuiria ou não para suas trajetórias de vida? Formariam-se na universidade, casariam-se, teriam filhos como suas mães? Ou morreriam antes disso? Ou depois? Quantas delas? Muda alguma coisa para elas estar ali? Especulações...
Mas fica claro que esse não é só um movimento fashion - é um movimento real. Lembrete constante disso é que na mescla desse povo há sempre aqueles com olhos estatelados, andar sem rumo, a galera da droga pesada - são os perdidos da sociedade falida a quem Mano também acolhe. “Aqui estamos todos entre nós, não vamos nos estranhar, certo?”, anunciava no início do show. Mas como não se estranhar? Em meio à estética periférica há a realidade periférica, as garrafas de vodca nas mochilas, e desafio à pobreza extrema, a busca compulsiva pela oblividão, os enormes cigarros de maconha acesos com pompa desafiadora, os que aos poucos caem ao chão chapados, a moça de rosto belíssimo sentada no meio fio com olhar perdido, os que cobrem suas cabeças pois a ‘viagem’ tomou conta deles, outros que vomitam ali mesmo....quem sabe se chegarão em casa esta noite?
O universo Racionais fez poesia da vida dura, deu orgulho aos ‘fodidos’ mas fodidos eles ainda estão, em sua maioria – a vida é ‘loka’, como se lê nas motos da cidade, mas a vida é também dura e a política ainda se faz em construção. A energia estupenda que se gera num evento destes próvem desse conflito, mas é traiçoeira e pode a qualquer minuto se voltar para o mal. E foi isso mesmo que aconteceu, não? Hoje, Domingo, me ligou Serjão, que do Municipal acabou não indo conosco para a Sé, querendo saber se eu estava bem. Viu na internet o que o show dos Racionais acabou em guerra, com carros incendiados, balas de borracha, conflito com policiais, roubo de munições. Felizmente, algumas de nós, já cansadas, fomos embora antes da ocorrida ebulição.
Liguei para Taís, que havia ficado até o fim, que me disse que tudo começou quando alguns policiais subiram numa banca de jornais e desceram o cacetete em um pessoal que assistia o show em cima delas. Os outros protestaram, acuaram os policiais contra a banca e começaram a jogar coisas e xingar-los de FDP. Isso foi o que precipitou a intervenção do batalhão com bobas de gás pimenta e tal. Conflito entre o Estado e os excluídos do sistema, tão narrado por Mano Brown, se repetiu mais uma vez.
Nesta hora, eu e Catherine já havíamos conseguimos um táxi para voltar para casa. Cruzando a 23 de Março vimos dois corpos deitados ao chão no canteiro, cobertos com tecido de alumínio, a viatura policial iluminando a noite – acidente.
Vivi São Paulo e cheguei em casa viva da Virada! Pronta para a próxima - claro. E há como resistir ser aquilo que somos?
2007
Nenhum comentário:
Postar um comentário