Era domingo, eu escrevia meu romance,
quando um homem foi morto na porta de casa.
Cinco tiros secos. Calhambeque antigo? Nada.
.
Sangue na muralha da frente.
Da janela, com medo de levar bala perdida,
vi o policial pôr as luvas, pegar o corpo...
depositou-o no banco de trás da viatura.
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O cortejo foi de cinto motoqueiros abelhudos da Civil.
.
Haveria mortes no meu romance,
mas essa foi mais forte. A vida,
sempre ela. Deixei-o de lado.
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Rumores nas calçadas, o bairro discreto
teve seu dia de cidade pequena. Você viu?
Foi ladrão? Ladrão de carro. Passou por aqui.
Bateram na esquina da Angelina, eu ouvi.
Ele colocou as mãos pro alto, os caras o fritaram.
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Enredo: era domingo, alguém acordou do outro lado da cidade,
beijou a mãe (ou amante?), cheirou algo (?), encontrou o parceiro,
entraram no ônibus, saltaram na ponte, caminharam até o posto,
avistaram a caminhonete de um cara rico, saltaram dentro.
.Era domingo, eu escrevia meu romance, e ele nem imaginava
que morreria na porta da minha casa cravado com cinco tiros
e inspiraria um poema de não-ficção sem romance algum.
Um comentário:
“Poetry makes language care because it renders everything intimate...
There is often nothing more substantial to place against the cruelty and indifference of the world than this caring”.
John Berger, 'And Our Faces, My Heart, Brief As Photos'
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