terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Crônica: Livro gratuito é objeto de desejo

.....O cenário era bonito e solidário. SESC Santo André em dia de domingo, com evento para crianças de todas as idades sobre literatura indígena. Dezenas delas assistiram atentamente às apresentações dos índios acomodadas em puffs coloridos. Ao final, um dos autores sentou-se ao lado de um montinho de livros para dá-los às crianças.
.....Observei como a fila dos candidatos formou-se tão velozmente, os desavergonhados pulando a vez dos outros para garantir a frente, os “civilizados” horrorizados com a atitude faminta dos primeiros deixando-os passar com seus olhos arregalados e os sossegados esperando a fila estar formada para só então levantarem-se languidamente dos puffs.
.....Somente dois puffs permaneceram ocupados durante o pico da fila. O meu, um puff azul (perfeito para um narrador filosófico!), e da mulher ao lado, num puff vermelho-fogo que não precisou levantar-se, pois as crianças que a acompanhavam haviam conseguido a pole position da fila. Logo as crias voltaram saltitantes com dois livros autografados, deram-nos para ela e saíram para brincar.
.....Eu já havia calculado que a pilha de livros não daria para todos e pensei comigo que era errado uma família levar dois livros para casa, mas fiquei quieta.
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.....Não deu nem dois minutos e uma mulher com jeito de gato do mato aproximou-se da do puff vermelho, que tinha os dois livros acomodados no colo, e disse:
- Oi, eu sou a Cleusa.
- Oi.
- Você ganhou dois livros?
.....Isto era óbvio, mas a mulher do puff vermelho balançou a cabeça que sim.
- É que só pode um por família.
- Um é do meu filho e o outro é do meu sobrinho.
- É que eu trabalho numa creche...
- Venha no dia 18 que haverá outro evento destes.
- É que dia 18 eu não vou poder vir.
- Então, fale com o autor.
- Eu já falei e ele me disse que era só um livro por família, por isso eu vim falar com você.
- Como te disse, aqui são duas famílias.
- É que eu faço um trabalho de incentivo à leitura junto a crianças carentes em São Bernardo do Campo. É quase na zona rural. Lido com filhos de pais separados, de presidiários...
- Belo trabalho.
.....Sua voz metálica não titubeava, era impassível e sabia muito bem em que terreno pisava.
.....A outra, por sua vez, não desistia.
- Para eu chegar aqui eu pego quase três horas de condução, caminho até o ponto do ônibus, pego um e depois outro ônibus, depois uma Kombi, o metrô e depois outra Kombi...
.....A esta altura eu já teria dado os dois livros para ela e mais o dinheiro da condução de volta, só para afastar aquele agouro de mim. A mulher do puff vermelho surpreendia:
- Nossa, mas tem um caminho bem mais fácil para vir de São Bernardo para cá.
.....Explicou direitinho a alternativa.
.....As duas continuaram a conversa por quase meia hora. Cheguei a pensar que tornariam-se amigas. No final, Cleusa já usava recursos extremos. Falava sobre como uma parte das crianças de sua creche era deficiente física e a outra era praticamente cega, mas que o sonho de todas elas era algum dia ler um livro de literatura indígena.
.....Com as mãos envoltas firmemente nos seus dois livros, a outra encorajava-a em tom confortante - Mas você vai conseguir, não se preocupe.
.....Finalmente, Cleusa desistiu - Então está bem (eu ouvia ecos subterrâneos de, “Sua egoísta, ladra de livros públicos, sem coração...). Tudo de bom pra você, tá?
- Obrigada, querida. E boa sorte.
...................................*
Pensei as seguintes coisas:
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1) Nunca antes daquela tarde, aquelas mulheres tinham ouvido falar de literatura indígena. Muito provavelmente vieram ao SESC para tomar sol na piscina e ficaram sabendo do evento por acaso. Que haveria distribuição gratuita de livros elas não tinham como saber, pois isso não fora anunciado de antemão. Se o livro custasse R$5 muito provavelmente nenhuma das duas teria comprado.
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2) O ganho do livro, para a primeira, foi uma surpresa positiva, daquelas coisas que não esperamos e com a qual a vida nos agracia. Ela sentiu-se abençoada. Não só isso, mas o objeto com o qual ela fora agraciada era profundamente desejado por outra pessoa. Não só ela havia ganho um livro de literatura indígena, mas dois livros de literatura indígena e aquele título era desejado por uma pessoa que mora em São Bernardo do Campo e teve que pegar 10 conduções para tentar ter este mesmo livro. No dia 18, esta pessoa ia ter que sair de São Bernardo do Campo às cinco da manhã para voltar ao SESC Santo André só para ver se conseguia o livro de literatura indígena que ela ganhou se esforço algum. Quanto mais Cleusa exarcebava seu desejo e disposição de sacrifício pelo livro, mais a mulher do puff vermelho sentia-se uma grande felizarda. Era impossível partir com a sensação de: a vida sorriu para mim e ninguém é tão abençoada na vida quanto eu. Isso explica sua toda sua força e polidez no trato da mulher pedinte de seu livro.
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3) Verdade seja dita, Cleusa foi intrusiva e insistente, mas estava coberta de razão. Mesmo que os meninos fossem primos, eles poderiam muito bem ter compartilhado o livro. Ela viu que houve uma injusta distribuição de recursos públicos e resolveu atacar com todas as armas que conhecia. Admiro a sua cara de pau. No lugar dela, mesmo se eu de fato tivesse cinqüenta crianças carentes à espera daquele livro de literatura indígena, eu teria aproximando-me da mulher no puff vermelho, sugerido uma doação, em razão do critério de um livro por família, e após o primeiro fora teria ido embora cabisbaixa. Nas três horas de trajeto de volta, teria sentido-me magoada por as pessoas serem tão más e egoístas.
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4) A estratégia que teria funcionado para Cleusa era a seguinte: sentar-se ao lado da mulher com o puff vermelho, como quem não quer nada, atender o telefone celular (de mentirinha) e falar bem alto. “Mano, aquele índio macumbeiro está aqui de novo distribuindo aquele livro que dá conjuntivite. Você acha que devíamos chamar a polícia?” A mulher do puff vermelho teria se preocupado e perguntado à Cleusa sobre o caso. Cleusa explicaria que trabalhava numa creche aonde as crianças haviam ficado quase cegas após terem lido aquele livro. A outra teria jogado os dois livros longe, xingando que ela bem que suspeitava que “Coisa de graça só podia vir com uma praga destas, mesmo!”. Pegaria os dois filhos (que o eram de fato) e correria para o banheiro para lavar suas mãos. Cleusa pegaria os dois livros tranquilamente e os levaria para casa, um para o filho e outro para o sobrinho. Eficaz, gastaria menos saliva e ainda não passaria por chata.

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