quarta-feira, 25 de fevereiro de 2009

Verde

Ontem fez
dez anos que fiz
vinte e quatro e
vinte anos que
fiz catorze.
*
Presente disso foi
a conversão
da chuva de lágrimas
em uma gota
de esperança

quinta-feira, 19 de fevereiro de 2009

Urubu Amigo

Gente, desculpem que este post vai ser de improviso, mas estava almoçando no "quilo" ao lado de casa e eles sempre deixam a TV ligada num programa horroroso chamado Cidade Alerta (ou algo do tipo) que relata as chacinas e roubos cinematográficos do dia na cidade, mas hoje tive uma surpresa. A manchete do dia era: URUBU, O MELHOR AMIGO DO HOMEM?
Minha primeira impressão foi: "que coisa idiota, será que eles estão tão sem notícias a ponto de fazer matéria sobre um urubu!" Pois bem, eu acabei assistindo e eis que um fulano simpático de uma cidade do interior de São Paulo fez amizade com uma urubu feia-que-nem-o-demônio, batizou-a de "Loira" e eles viveram felizes para sempre, de verdade!
A urubu deita com ele na rede, quando ele vai comprar pão de bicicleta ela vai no ombro dele, come na mão dele, brinca com os filhos do vizinho e até com o cachorro. Realmente, é impressionante. No ponto alto do programa, o dono da urubu contou que quando ele percebeu que "a amava" (a urubu) resolveu que tinham que voar juntos, já que ela vivia sempre em terra com ele, mas sua natureza é voar. O cara aprendeu a pular de asa delta! Foram todos para o alto de uma montanha e fizeram um vôo livre (o dono do urubu e o repórter) com a urubu rondando eles durante o vôo.
Eu, nesta minha fase filosófica da vida, fiquei pensando: como o ser humano é surpreendente! Os animais então nem se fala! Num mundo tão coalhado de maldades, tema de pauta favorito do Cidade Alerta, um homem e um urubu se apaixonam, porque não há outra palavra para isso, e desafiam TODAS as leis da natureza, todo o sentido de tudo, e passam a demonstrar entre eles cuidado, amor, dedicação. Fiquei pensando que talvez seja um dos berços da beleza poética, este poder do ser humano de ir tão contra a maré e surpreender. Valeu o almoço!

segunda-feira, 16 de fevereiro de 2009

terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Crônica: Livro gratuito é objeto de desejo

.....O cenário era bonito e solidário. SESC Santo André em dia de domingo, com evento para crianças de todas as idades sobre literatura indígena. Dezenas delas assistiram atentamente às apresentações dos índios acomodadas em puffs coloridos. Ao final, um dos autores sentou-se ao lado de um montinho de livros para dá-los às crianças.
.....Observei como a fila dos candidatos formou-se tão velozmente, os desavergonhados pulando a vez dos outros para garantir a frente, os “civilizados” horrorizados com a atitude faminta dos primeiros deixando-os passar com seus olhos arregalados e os sossegados esperando a fila estar formada para só então levantarem-se languidamente dos puffs.
.....Somente dois puffs permaneceram ocupados durante o pico da fila. O meu, um puff azul (perfeito para um narrador filosófico!), e da mulher ao lado, num puff vermelho-fogo que não precisou levantar-se, pois as crianças que a acompanhavam haviam conseguido a pole position da fila. Logo as crias voltaram saltitantes com dois livros autografados, deram-nos para ela e saíram para brincar.
.....Eu já havia calculado que a pilha de livros não daria para todos e pensei comigo que era errado uma família levar dois livros para casa, mas fiquei quieta.
.....................................*
.....Não deu nem dois minutos e uma mulher com jeito de gato do mato aproximou-se da do puff vermelho, que tinha os dois livros acomodados no colo, e disse:
- Oi, eu sou a Cleusa.
- Oi.
- Você ganhou dois livros?
.....Isto era óbvio, mas a mulher do puff vermelho balançou a cabeça que sim.
- É que só pode um por família.
- Um é do meu filho e o outro é do meu sobrinho.
- É que eu trabalho numa creche...
- Venha no dia 18 que haverá outro evento destes.
- É que dia 18 eu não vou poder vir.
- Então, fale com o autor.
- Eu já falei e ele me disse que era só um livro por família, por isso eu vim falar com você.
- Como te disse, aqui são duas famílias.
- É que eu faço um trabalho de incentivo à leitura junto a crianças carentes em São Bernardo do Campo. É quase na zona rural. Lido com filhos de pais separados, de presidiários...
- Belo trabalho.
.....Sua voz metálica não titubeava, era impassível e sabia muito bem em que terreno pisava.
.....A outra, por sua vez, não desistia.
- Para eu chegar aqui eu pego quase três horas de condução, caminho até o ponto do ônibus, pego um e depois outro ônibus, depois uma Kombi, o metrô e depois outra Kombi...
.....A esta altura eu já teria dado os dois livros para ela e mais o dinheiro da condução de volta, só para afastar aquele agouro de mim. A mulher do puff vermelho surpreendia:
- Nossa, mas tem um caminho bem mais fácil para vir de São Bernardo para cá.
.....Explicou direitinho a alternativa.
.....As duas continuaram a conversa por quase meia hora. Cheguei a pensar que tornariam-se amigas. No final, Cleusa já usava recursos extremos. Falava sobre como uma parte das crianças de sua creche era deficiente física e a outra era praticamente cega, mas que o sonho de todas elas era algum dia ler um livro de literatura indígena.
.....Com as mãos envoltas firmemente nos seus dois livros, a outra encorajava-a em tom confortante - Mas você vai conseguir, não se preocupe.
.....Finalmente, Cleusa desistiu - Então está bem (eu ouvia ecos subterrâneos de, “Sua egoísta, ladra de livros públicos, sem coração...). Tudo de bom pra você, tá?
- Obrigada, querida. E boa sorte.
...................................*
Pensei as seguintes coisas:
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1) Nunca antes daquela tarde, aquelas mulheres tinham ouvido falar de literatura indígena. Muito provavelmente vieram ao SESC para tomar sol na piscina e ficaram sabendo do evento por acaso. Que haveria distribuição gratuita de livros elas não tinham como saber, pois isso não fora anunciado de antemão. Se o livro custasse R$5 muito provavelmente nenhuma das duas teria comprado.
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2) O ganho do livro, para a primeira, foi uma surpresa positiva, daquelas coisas que não esperamos e com a qual a vida nos agracia. Ela sentiu-se abençoada. Não só isso, mas o objeto com o qual ela fora agraciada era profundamente desejado por outra pessoa. Não só ela havia ganho um livro de literatura indígena, mas dois livros de literatura indígena e aquele título era desejado por uma pessoa que mora em São Bernardo do Campo e teve que pegar 10 conduções para tentar ter este mesmo livro. No dia 18, esta pessoa ia ter que sair de São Bernardo do Campo às cinco da manhã para voltar ao SESC Santo André só para ver se conseguia o livro de literatura indígena que ela ganhou se esforço algum. Quanto mais Cleusa exarcebava seu desejo e disposição de sacrifício pelo livro, mais a mulher do puff vermelho sentia-se uma grande felizarda. Era impossível partir com a sensação de: a vida sorriu para mim e ninguém é tão abençoada na vida quanto eu. Isso explica sua toda sua força e polidez no trato da mulher pedinte de seu livro.
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3) Verdade seja dita, Cleusa foi intrusiva e insistente, mas estava coberta de razão. Mesmo que os meninos fossem primos, eles poderiam muito bem ter compartilhado o livro. Ela viu que houve uma injusta distribuição de recursos públicos e resolveu atacar com todas as armas que conhecia. Admiro a sua cara de pau. No lugar dela, mesmo se eu de fato tivesse cinqüenta crianças carentes à espera daquele livro de literatura indígena, eu teria aproximando-me da mulher no puff vermelho, sugerido uma doação, em razão do critério de um livro por família, e após o primeiro fora teria ido embora cabisbaixa. Nas três horas de trajeto de volta, teria sentido-me magoada por as pessoas serem tão más e egoístas.
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4) A estratégia que teria funcionado para Cleusa era a seguinte: sentar-se ao lado da mulher com o puff vermelho, como quem não quer nada, atender o telefone celular (de mentirinha) e falar bem alto. “Mano, aquele índio macumbeiro está aqui de novo distribuindo aquele livro que dá conjuntivite. Você acha que devíamos chamar a polícia?” A mulher do puff vermelho teria se preocupado e perguntado à Cleusa sobre o caso. Cleusa explicaria que trabalhava numa creche aonde as crianças haviam ficado quase cegas após terem lido aquele livro. A outra teria jogado os dois livros longe, xingando que ela bem que suspeitava que “Coisa de graça só podia vir com uma praga destas, mesmo!”. Pegaria os dois filhos (que o eram de fato) e correria para o banheiro para lavar suas mãos. Cleusa pegaria os dois livros tranquilamente e os levaria para casa, um para o filho e outro para o sobrinho. Eficaz, gastaria menos saliva e ainda não passaria por chata.

sábado, 7 de fevereiro de 2009

Num mar sem lei, viva os piratas justiçeiros!

A imagem com a qual me deparei hoje cedo na capa do jornal me transportou para outro mundo! O título era Colisão no Mar: Ambientalistas Perseguem Baleeiro. São dois mega navios colidindo no mar durante a perseguição.
Imaginem que no âmbito de um conflito jurídico sobre a soberania de um território marítimo na Antartida (um juíz proibiu a caça de baleias e o Governo do Japão não reconhece sua jurisdição), os ambientalistas de uma ONG chamada Sea Shepard resolveram perseguir eles mesmos os navios baleeiros para atrapalhar sua atuação.
O capitão do navio, o barbudão Paul Watson, descreve como eles realizam as perseguições, realizando manobras arriscadas em alto mar e lançando recipientes contendo ácido corrosivo. Os japoneses revidam com disparos de canhão d'água e atiram pedaços de metal, além de emitir ruídos ensurdecedores!!!
Fico pensando no cotidiano destes justiçeiros do mar! Acordar num navio, o frio terrível e partir para o combate direto contra os navios comerciais japoneses. É uma manifestação extrema da luta por recursos naturais finitos. Como se Carlos Minc acordasse todos os dias na floresta amazônica e travasse batalha corpo a corpo contra os madereiros, usando coquetel molotof e flechas envenenadas. Estamos mais acostumados à testemunhar batalhas por emissão de medidas provisórias e leis ou discutirmos que falta recurso para fiscalização, se é o IBAMA ou o exército que deve coordenar as ações.
Por mais que saibamos que toda o propósito do direito é evoluirmos deste modo primitivo de resolução de disputas, eu achei incrível essa inciativa de uma ONG, frente à falência do direito internacional, comprar um barco e, no melhor estilo pirata-justiçeiro, perseguir os navios baleeiros e ponto final! Acho que precismos mais disso na vida!

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O Parque é a Democracia

Todos sonham com ela, ou ao menos dizem que sim. Vivemos dentro dela, cada vez mais. Mas, qual a sua face? Quando expressa num território específico, quais são as suas cores e as suas formas? Na cidade de São Paulo, a democracia tem ao menos um lar: o Parque do Ibirapuera, no fim de semana. Num destes, o fotógrafo foi em busca de seu retrato.
Espaço público, de acesso fácil e gratuito, o Parque recebe gente de toda a metrópole. Muita gente. Em suas vias não há indivíduos, só grupos. Por elas correm rios de adolescentes, de índios, de skate, de gringos, de bicicletas, famílias grandes e seus cachorros, de patins, casais também, que na aglomeração formam também grupos.
No Parque tem arte, no prédio da Bienal, nas camisetas das moças, na Oca, nas estátuas vivas ou mortas, no MAM e na Praça da Paz, exposta em outdoors. No Parque tem música, no Auditório projetado por Niemeyer, nos MP3 e nas calçadas, orquestra sinfônica, sanfoneiro e roda de roqueiro.
Tem gente fumando maconha e gente tomando chimarrão. Têm guardas, mas eles só aparecem de vez em quando. São poucos para tantos cachorros soltos e crianças dependuradas nas árvores centenárias. No governo no povo a lei é de aplicação singela, só para dizer que tem.
O Parque tem comércio de badulaques, água de coco, frizbee, salgadinhos e artesanato.
No lago do Parque as carpas sobrevivem, com pouco oxigênio e migalhas de pão jogadas pelos turistas.
O Parque é esteticamente feio e conceitualmente bonito, pensa o fotógrafo. Passou uma tarde inteira lá sem conseguir tirar uma foto, pois em todas elas houve interferência. Atrás de cada rosto bonito tinha gente fazendo pic-nic ou pipa voando. Tudo está sempre repleto de gente no Parque, tudo em constante movimento, seu coração bate oprimido. O fotógrafo vê a vida e pensa abdicar da câmara.
A democracia o convida, mas o fotógrafo resiste. Ele ainda quer ser só isto, o fotógrafo, removido dela, admirando-se dela, de fora. Ela o desafia: minha beleza não se capta em filme, somente na alma. Ele volta-se para a natureza, tira uma foto de uma azaléia cor-de-rosa e outra de um bouganville lilás, mas elas o parecem pálidas.
É domingo e há uma rede a balançar no redário do Parque. Ele ainda resiste, mas sente fome. Lembra-se do pão de queijo que vira na lanchonete próxima ao Planetário. Recorda-se de que é humano. Está cansado de trabalhar. As famílias almoçam, muitas delas, em toda parte. Ele caminha até a lanchonete, ainda em busca de ângulos. Pede um lanche, um hambúrguer chamado X-tudo. É a democracia envolvendo-o. Uma cerveja, por favor.
Enquanto come, ele percebe que é o único que veio sozinho ao parque. O sol brilha, a cerveja bate. Ela caminha até o redário. Alguém já sabia que ele viria sem rede de casa. É o Seu João, alagoano de São José dos Milagres, quinze anos de Sumpaulo, que aluga redes por R$5. O fotógrafo não pechincha.
Deitado, observa as famílias penduradas nas meia-luas coloridas ao lado. Seus dedos vão em direção da câmera, mas não...o fotógrafo está sonolento. Por um instante, ele preocupa-se com o seguinte: e se alguém me ver assim, deitado na rede, em meio às famílias que vão ao Parque no domingo? A rede balança, o vento apazigua a sua urticária. No limiar do sono não dá mais para negar, ele confessa para si mesmo, “Eu sou o povo.”
É estranho não ter mais aonde se refugiar. O cidadão ama a democracia tanto quanto a teme. Ser indivíduo é demasiado lisonjeiro. Olhar a massa, diferenciando-se dela, é confortável. É do ser civilizado isso, não da herança animal. Um cachorro é um cachorro. Os seres civilizados é que querem ser de raça.
Num momento de lucidez o fotógrafo consegue um auto-retrato, “Sou apenas feliz, como tantos outros.” Sua mente retesa-se, mas seus músculos relaxam, mesmo contra sua vontade. Não é assim tão ruim, diz o sol. A cerveja, a rede, o vento, ele adormece para a vida.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009

Crônica: Fila de Correio

.....Eu sempre amei cartas, carteiros e correios. Apesar de ter adotado a internet, para a surpresa de muitos, ainda vou regularmente ao correio. Envio cartas para amigos e parentes, em geral com fotos ou livros, para pessoas mais velhas ou que vivem no interior do Brasil. A cada quinze dias eu junto a pilha de cartas que acumulo numa cesta e vou a pé até o correio. Ir a pé faz parte do que tornou-se um ritual de retomada de um tempo mais lento de vida.
.....Quando chego lá, ao deparar-me com a longa fila do correio, eu sempre questiono se este meu ritual é mesmo uma dádiva reflexiva ou só uma ponta de masoquismo. Pego uma senha regular (não sou gestante e nem idosa) e junto me aos mortais. Em geral, eles já estão ali faz algum tempo e seus semblantes fazem lembrar a cena do filme Beetlejuice, quando o personagem chega ao inferno e encontra a sala de espera repleta de personagens-zumbis cobertos de teias de aranha. Acho aquilo engraçado.
.....A cadeira é horrível. Cheia de boas intenções, daqueles modelos acolchoados do tipo escritório, mas tantas pessoas já sentaram ali que estão todas afundadas e com o azul manchado. Eu não me importo. Sento-me e começo a observar os meus vizinhos. Logo identifico os divertidos novatos, com carta em punho e o dinheiro já separado em prol do bom andamento da fila. As boas intenções e sua inexorável naivete... porque é que a sapiência vem sempre acompanhada da complacência – eu já fui assim, amigo!
.....Logo chega o primeiro de muitos idosos que passarão a minha vez na fila. Eu sei que um dia, se Deus quiser, eu vou ficar idosa e agradecer a existência da lei das filas preferenciais, mas até lá, apesar de agudos esforços de racionalização, eu não consigo deixar de ressenti-los - há MUITOS idosos no correio. Velhinhos e nem tão velinhos, pois hoje em dia o pessoal é todo bem conservado e não tem como a gente contestar seu status sem passar por um jovem mesquinho. Eu sei que é a maior concentração de idosos por metro quadrado do mundo, talvez seja uma espécie de ponto de encontro. Tenho a certeza de que todos os jovens do mundo mandam seus avós postarem suas cartas e só eu é que não tenho mais avós. Teorias conspiratórias à parte, eu sei ao certo que um empresário malandro abriu uma empresa de Office-boys da terceira idade por causa deste benefício. Deve estar milionário.
.....Falando em Office-boys, sempre do sexo masculino e jovens, portanto sem lugar preferencial na fila como eu, eles são grandes companheirões. Habituados a enfrentar fila e estando em horário de trabalho, sentam-se resignados nas cadeiras manchadas, sempre carregados de pilhas de cartas comerciais. Penso que eles não se importam, pois é momento light do dia deles - melhor do que estar zanzando pelo trânsito louco da cidade de moto. Mesmo assim, e sei disso porque eu mesmo nunca vou ao correio com pressa, é impossível não incomodar-se com a lentidão no atendimento. Conversamos sobre isso e olha que o papo é de alto nível. Em geral discutimos teoria de administração pública, reconhecendo que o serviço público não tem como ser eficiente apesar de a idéia ser boa, pois o salário garantido fulmina qualquer incentivo para isso.
.....A calma dos atendentes do correio de fato é algo mistificante. São todos absolutamente impassíveis. Deve ser algo do treinamento deles, pois mesmo quando vario de correio reconheço seus semblantes padronizados. São calmos e gostam do que fazem. ADORAM colar os selos nas cartas, um a um, com o maior cuidado do mundo. Outro dia havia um rapaz o fazia como se fossem diamantes num colar de platina. Ele testou o meu limite a tal ponto que eu quase gritei do fim da fila, “Cola essa p**a logo, seu m****!” Na última greve dos correios, surpreendi-me ao vê-los lá como de hábito, sem nenhum ímpeto combativo, e o atendente me explicou, “Greve é coisa do sindicato dos carteiros, nós os atendentes de loja temos outro sindicato e nunca entramos em greve.”
.....Eu tento sempre manter meu olhar filosófico sobre a vida na fila, como se fosse uma prática meditativa. Só após uns vinte idosos, três gestantes e outras duas lactantes (agora tem isso também!) já passaram a minha frente é que eu me descontrolo. Em geral eu já estou na boca da fila e surte aquele efeito visceral de quando a fome depara-se com o cheiro do feijão. Elejo um dos novatos e começo a reclamar em voz alta, “É um absurdo esta fila.” “Um absurdo!!!” eles ecoam aliviados. Trocamos impressões, “Você viu aquela ali do ponto de atendimento número 5? Enquanto os outros atendem dez pessoas ela atende uma.” “Deve ser a estagiária” eu postulo. “E aquele cara que chegou com umas duzentas cartas e monopolizou o número 2 por quase meia hora. Isso devia ser proibido!” Eu escuto, concordo sempre, recordo outro incidente - é um ato de solidariedade, cidadãos se acolhendo em meio ao infortúnio.
.....Finalmente chega a minha vez. Às vezes eu dou uma reclamada básica sobre a demora da fila, “Eu fiquei na fila durante quase cinqüenta minutos, sabia?” As atendentes sorriem e dizem, “Terça feira é complicado mesmo.” Minhas cartas são poucas, portanto a minha transação é rápida. Rápida demais! Por um lado, sei que isso ajuda os que ainda padecem na fila, mas o lado meu mais sádico se manifesta impulsionando-me a ocupar bem ocupado a minha vez no atendimento. Me dá vontade de bater o meu papo com a atendente, perguntar quanto custa o CD do Chitãozinho e Chororó da promoção, conferir se eu posso mesmo pagar minhas contas de luz no banco postal (repararam como os correios hoje prestam dezenas de serviços, mas mantém a mesma estrutura), “Que legal, eu não sabia, blá blá blá.” Quando termino, dou um adeus bem carinhoso para os que estão na fila, “Força irmãos! A nossa vez chega! Acreditem!” Eles riem e retribuem os votos!
.....No caminho de volta, reflito sobre a perda de tempo e o atraso tecnológico do meu ritual. Cogito a internetização definitiva. Depois, penso na minha tia de 80 anos que deixaria de receber minhas cartas e na família do interior do Cariri que não receberia as fotos que tirei deles na última viagem. Com quem conversariam os Office-boys? Penso até que os idosos da fila não teriam a vez de quem pular e isso lhes tiraria toda a graça de ter o benefício.
.....Conclui que minhas idas ao correio constituem uma simbiose social sado-masoquista que merece ser mantida, por seus prazeres e desprazeres, mas principalmente por ter tornado-se um dos poucos refúgios de contato humano na cidade digital. E claro, confesso, não vou desistir antes de chegar a minha vez de ter direito preferencial na fila. Uma dia desses eu engravido ou envelheço e não posso perder essa chance!