terça-feira, 4 de março de 2008

Conto de Caminheiro - Fazer por Merecer

(texto submetido ao Concurso Mercedez Bens de Contos)
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.....Demorou foi tempo para Castor se casar com Isadora. Eles namoraram anos e anos. Castor sempre viajou esse Brasil todo, de um canto até o outro, e Isadora ficava aqui pedindo pra eles se casarem. Acho que ela se encantou por aquele jeito orgulhoso dele, sentado na cabine daquele caminhãozão. Ele era macaco velho e ia sempre adiando. Mas todo dia de partida era a mesma coisa, ela vinha toda manhosa no portão da casa dele, ficava vendo ele arrumar as coisas com os olhos compridos, depois abraçava ele bem forte e saia chorando baixinho. Foi assim que o coração do homem foi amolecendo. Coração de homem é duro, mas um dia ele amolece, não é mesmo?
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Quando chegou de volta do Piauí a festa já estava toda arrumada esperando por ele. A igreja cheia de flor, as madrinhas todas de cor-de-rosa, a sogra com cara de enterro e, claro, Isadora toda de branco, radiante, finalmente noiva e em breve esposa de Castor. As chaves ele deixou com ela antes de partir, junto com um dinheirinho, e na volta a casa já parecia outra. Toda limpinha, a cozinha pintada, equipada com tudo o que é eletrodoméstico, até quarto de menino ela separou. Castor tomou um bom banho, vestiu o terno que ela deixou passado em cima da cama e foi-se embora para a igreja. Foi bonita a cerimônia.
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No dia seguinte, como tinha de ser, Castor pôs o pé na estrada. Isadora choramingou menos na porta da casa que era agora dela também e lá se foi o homem para os lados do Amapá. Castor acabou achando boa a novidade. Assim ia ter menos choradeira, ele disse. Além do que, ele estava era ficando bode velho e nesta idade o bom é ter alguém pra cuidar da gente mesmo. Isadora era mulher carinhosa, sempre quando ele voltava das viagens ela lhe enchia de agrados, perfumava a casa, colocava vestido novo, fazia bolo de milho e de mandioca.
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Mas no fundo, creio eu, Isadora esperava era que depois de casado ele ia viajar menos. Só que isso era coisa difícil de acontecer. Castor ganhava bem e para isso fazia as rotas mais longas e perigosas, no mínimo vinte dias de estrada. Gostava do que fazia. Era caminhoneiro por convicção. Daqueles que antes de aprender a ler já sentava no colo do pai e pedia a direção. Gostava da vida na estrada, de conhecer os lugares diferentes, as pessoas de todo tipo, de estender a rede na sombra das árvores e dar um cochilo e, claro, das mulheres da vida que lhe tentavam nas curvas distantes. O lema inscrito na traseira do seu caminhão era, "Mulher é que nem estrada, quando é boa, é perigosa."
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Aos poucos, Isadora foi perdendo a esperança da vida que sonhou. Ela ainda tentou embuchar de todo jeito, pensando que um menino seguraria Castor em casa, mas nada de barriga aparecer. Não sei se era ela ou ele que tinha o problema, mas os anos foram se passando e nada. Foi ficando mais quieta. Castor notou que o choramingo dos dias de partida parou e também a história de bolo fresquinho nos dias de chegada.
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Um certo dia, Castor estava indo lá pra as bandas das Gerais, mas passando na fiscalização os documentos da carga não estavam corretos. Teve de voltar. Tinha saído de manhã cedo de casa e quando chegou de volta já era quase meia-noite. Bateu na porta. Silêncio. Bateu de novo e nada. Achou estranho. Tirou a chave da bolsa, abriu a porta e encontrou a casa vazia. Onde estaria a Isadora? Deixou suas coisas e saiu em busca da mulher. Devia estar na casa da irmã. No caminho passou em frente ao Boteco do Chileno e, imagine só, viu Isadora sentada numa mesa repleta de homens, tomando cerveja. Resolveu não causar escândalo. Voltou para casa, tomou um banho, deitou na cama e pôs-se a esperar a mulher. As horas passaram lentamente. Já eram quase duas da manhã quando ele ouviu o girar da chave na fechadura. Apagou o abajur e escondeu-se atrás da porta do quarto.
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Isadora entrou em casa rindo alto. Estava acompanhada de um rapaz. Castor ouviu as brincadeiras e insinuações entre os dois de trás da porta. Manteve a calma. Os dois direcionaram-se ao quarto do casal. Castor permaneceu no esconderijo. Ouviu beijos e sussurros. Esperou. Logo, o casal se despiu para ficar mais à vontade e já não havia como negar. Foi quando Castor bateu a porta revelando-se, como se fosse assombração, para o casal desnudo. De espingarda na mão. O desmaio de Isadora foi instantâneo.
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O amante apavorado, um tipo branquelo da cidade, clamou por perdão, disse que era a primeira vez que aquilo acontecia, que não faria mais, que mudaria de cidade se ele quisesse, implorou que não o matasse, que era casado também e que tinha cinco filhos. Castor ouviu seu suplício e disse, "Cale-se cabra safado. Não vou te matar porque você não vale uma bala da minha espingarda. Agora, ponha as mãos na cabeça que você vai é levar uma surra para aprender a não mexer com a mulher dos outros." Pegou o chicote e deu no cabra até sangrar, açoitando-lhe as costas e os braços. Foi só quando Isadora voltou do desmaio que ele parou e voltou-se para ela. "Agora é a sua vez, sua vadia." E soltou sua raiva no corpo daquela que havia até então sido a sua mulher, sua Isadora.
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O dia já raiava quando Castor cessou a surra. Fez os dois se levantarem da cama e darem as mãos. Ordenou que fossem embora do jeito que estavam, nuzinhos. O amante não disse nada, se achando no lucro de sair dali vivo, mas Isadora suplicou-lhe perdão, "É minha casa, Castor, para onde eu vou? E as minhas coisas? Perdoe-me, por favor." Castor disse a ela, "Tudo o que te veste e tudo o que tinhas nesta casa fui eu que lhe dei, mas você não deu valor. Isadora, você não foi merecedora do meu amor. Saia e não volte nunca mais." Sem opção, o casal de amantes caminhou para a rua, sua vergonha exposta, ambos chorando e sem rumo.
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O povo todo comentou e até hoje essa história passa de boca em boca. Alguns defendem a mulher, dizem que quando o homem deixa a mulher sozinha muito tempo ela fica carente e tem sempre um ‘pé de pano’ que se aproveita. Outros defendem ele, dizem que era homem trabalhador e que ela sabia que essa era a vida dele quando quis o casório. Sei que depois disso, ele ficou sozinho com as viagens dele e ela, envergonhada de ficar por aqui, mudou-se para o Mato Grosso, aonde vivia uma prima dela, e dizem que acabou batendo ponto nas estradas de lá. Fico pensando se um dia desses ele se distrai e pega e ex-mulher numa beira destas!
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Eu sei não, só vivo mesmo é de contar histórias pro povo, mas penso que cada um teve a sua razão nesta história. O triste que eu acho na vida é quando as coisas que são coisas da vida, e não coisas de quem tem razão ou não das coisas, terminam afastando as pessoas que se gostam. Acho que esse foi o caso de Castor e Isadora.


3 comentários:

Anônimo disse...

Boa sorte ! Liniane

Flavio Soares de Barros disse...

Minha Isadora não precisou ficar sozinha não, bastou aparecer Venâncio, mestre de capoeira e graduado na escola da vida, para ela desabrochar e espalhar seu perfume pelas noites da cidade. Eu, coitado, fiquei só esperando, torcendo pelo acidente na curva do caminho que ela seguiu. Até que encontrei outra flor. E esqueci de continuar agourando.

Acho que os posts mais antigos do meu blog são mais "significativos" - whatever that means. Bom te conhecer. Beijo. F.

Flavio Soares de Barros disse...

Quero dizer, significativos daquilo que eu faço...